terça-feira, 17 de outubro de 2017


Lei da necessidade e

livre arbítrio



Os extemporâneos calores que nos abrasam, para alguns até à morte, outubro dentro, trazem-me de volta o meu Espinosa, refrigério certo nos meus desânimos.

Espinosa concebe Deus e Natureza como única realidade – uma única substância, infinita, indivisível, perfeita, causa sui, isto é, eterna, na medida em que da essência desta substância faz parte o existir. Este conceito de substância exclui a existência de qualquer outra, por isso que se limitariam mutuamente, sendo inconcebível um Deus limitado. Além disso, uma substância limitada colocar-nos-ia perante o problema do Nada, que necessariamente teríamos de conceber tanto no antes como no depois do existir. E um Nada gerador, ou como resultado de algo que deixou de existir, tanto repugna à nossa razão, como à ideia de um Deus Criador que, embora, por hipótese absurda, pudesse criar do nada, ficaria limitado pela sua Criação.

Entre os muitos corolários que se podem extrair desta concepção de Deus-Natureza há o da lei da necessidade, a ela se associando a velha questão do livre arbítrio. Esta lei da necessidade, no ser e no existir e devir das coisas, condiciona todos os acontecimentos do Universo, mesmo os do foro comportamental dos seres vivos, incluindo os humanos. Deus não é um titireiro a manipular, a seu belprazer, os bonecos que fez do barro que fez do nada, mas imanência pura numa realidade eterna em que tudo acontece por necessidade.

A cultura judaico-cristã, em todas as suas fórmulas impostas ao longo de séculos, formatou de tal modo as nossas mentes, que não nos apercebemos como manifestações desta lei se nos impõem com ensurdecedora evidência no nosso quotidiano. O produto de 2x2 será sempre 4, queiram ou não queiram os próprios deuses, e assim com todas as leis da matemática; quer queiramos quer não, nascemos porque alguém , não nós, o decidiu; morremos, esgotada a energia ou saturadas as sinapses; inelutavelmente, respiramos, comemos, dormimos, defecamos, copulamos...; nós, homens, cobiçamos com ardor inextinguível a mulher do próximo, para escândalo do próprio Deus (bíblico), que não quis, ou esqueceu, reprovar igual comportamento da mulher relativamente ao homem da sua próxima; assistimos, impotentes, à sucessão dos dias e das noites, dos equinócios e dos solstícios, a procelas e terramotos, a incêndios apocalípticos, à errância dos astros, ao nascimento e colapso das estrelas e, agora, depois de inventada a bolsa, às suas oscilações...

Que nos resta para o exercício do livre arbítrio? Um espaçozito marginal como cenário de decisões a que pomposamente chamamos livres. Pura ilusão: mesmo essas, são condicionadas por esse senhor absoluto das nossas vidas chamado DESEJO, quase sempre camuflado.

Atentemos, porém, a algumas das vantagens desta mundivisão: a ética é um estado natural liberto de conceitos como “culpa”, “bem e mal”..., produtos da relativização com que nós, limitados sapiens, analisamos a realidade, decompondo-a, ou da ignorância da ordem e da coerência da Natureza como um todo; a liberdade é a conformação com as leis, necessárias, da Natureza; a paz social deixa de ser uma miragem, pois a condenação cede lugar à compreensão dos outros; não precisamos de acreditar em Deus, e muito menos de o temer: nós somos Deus...

Ao argumento de que esta é uma atitude amorfa, derrotista, paralisante, eu respondo que me extasio com a contemplação da Natureza, que me realizo colaborando com ela nas suas múltiplas manifestações, que me serena aperceber-me da importância absoluta de cada parcela do Universo e o respeito que isso suscita em mim por tudo quanto me rodeia, que me comprazo, em arrebatamentos orgásticos, com a harmonia das esferas celestes, com uma boa reflexão sobre a unicidade do Ser, com a Pastoral de Beethoven, com a Clepsidra de Camilo Pessanha, com um quadro da Paula Rego...



O nosso querido seleccionador, Fernando Santos, disse-nos que foi Deus quem lhe concedeu, a seu pedido, envolvido em intensa fé, a vitória no Europeu de Futebol. Não malevolamente, por certo, o seu anúncio perante as câmaras de televisão, nesse glorioso 10 de Julho de 2016, terá sido no mínimo deselegante para com aqueles seus colegas que, com igual fervor, requisitaram a Deus semelhante graça. Por que não a tiveram do seu lado é questão que os crentes remetem para os insondáveis desígnios de Deus, que terá tido as suas razões, por exemplo, um passado de malandragem ou um simples grau de menor intensidade na manifestação da fé dos outros seleccionadores...Mas como compreender o adulto incólume que reza, ao lado da criança esmagada num terramoto? Foi a fé que o salvou, diz o próprio e, com ele, muitos crentes, fazendo de Deus um mesquinho simulacro da ganância, da vaidade e do egoísmo humanos... E já nem refiro as crianças vítimas fatais de catástrofes ao lado de adultos ateus saudavelmente vivos...



A minha estrada



É uma estrada concreta

de compacto alcatrão

vira à esquerda e à direita

como em qualquer receita

de uma estrada concreta

ou de imagiação



Por ela sigo na vida

às vezes em contra-mão



Não há verso sem reverso

nem partida sem regresso

por uma estrada concreta

ao sabor da inspiração











Parede, Outubro de 2017

Manuel Neto

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