Lei da necessidade e
livre arbítrio
Os extemporâneos calores
que nos abrasam, para alguns até à morte, outubro dentro, trazem-me de volta o
meu Espinosa, refrigério certo nos meus desânimos.
Espinosa concebe Deus e
Natureza como única realidade – uma única substância, infinita, indivisível,
perfeita, causa sui, isto é, eterna, na
medida em que da essência desta substância faz parte o existir. Este conceito
de substância exclui a existência de qualquer outra, por isso que se limitariam
mutuamente, sendo inconcebível um Deus limitado. Além disso, uma substância
limitada colocar-nos-ia perante o problema do Nada, que necessariamente
teríamos de conceber tanto no antes como no depois do existir. E um Nada
gerador, ou como resultado de algo que deixou de existir, tanto repugna à nossa
razão, como à ideia de um Deus Criador que, embora, por hipótese absurda,
pudesse criar do nada, ficaria limitado pela sua Criação.
Entre os muitos corolários
que se podem extrair desta concepção de Deus-Natureza há o da lei da necessidade, a ela se associando
a velha questão do livre arbítrio.
Esta lei da necessidade, no ser e no existir e devir das coisas, condiciona
todos os acontecimentos do Universo, mesmo os do foro comportamental dos seres
vivos, incluindo os humanos. Deus não é um titireiro a manipular, a seu
belprazer, os bonecos que fez do barro que fez do nada, mas imanência pura numa
realidade eterna em que tudo acontece por necessidade.
A cultura judaico-cristã,
em todas as suas fórmulas impostas ao longo de séculos, formatou de tal modo as
nossas mentes, que não nos apercebemos como manifestações desta lei se nos
impõem com ensurdecedora evidência no nosso quotidiano. O produto de 2x2 será
sempre 4, queiram ou não queiram os próprios deuses, e assim com todas as leis
da matemática; quer queiramos quer não, nascemos porque alguém , não nós, o
decidiu; morremos, esgotada a energia ou saturadas as sinapses;
inelutavelmente, respiramos, comemos, dormimos, defecamos, copulamos...; nós,
homens, cobiçamos com ardor inextinguível a mulher do próximo, para escândalo
do próprio Deus (bíblico), que não quis, ou esqueceu, reprovar igual
comportamento da mulher relativamente ao homem da sua próxima; assistimos,
impotentes, à sucessão dos dias e das noites, dos equinócios e dos solstícios,
a procelas e terramotos, a incêndios apocalípticos, à errância dos astros, ao
nascimento e colapso das estrelas e, agora, depois de inventada a bolsa, às suas
oscilações...
Que nos resta para o
exercício do livre arbítrio? Um espaçozito marginal como cenário de decisões a
que pomposamente chamamos livres. Pura ilusão: mesmo essas, são condicionadas
por esse senhor absoluto das nossas vidas chamado DESEJO, quase sempre
camuflado.
Atentemos, porém, a
algumas das vantagens desta mundivisão: a ética é um estado natural liberto de
conceitos como “culpa”, “bem e mal”..., produtos da relativização com que nós,
limitados sapiens, analisamos a realidade, decompondo-a, ou da ignorância da
ordem e da coerência da Natureza como um todo; a liberdade é a conformação com
as leis, necessárias, da Natureza; a paz social deixa de ser uma miragem, pois
a condenação cede lugar à compreensão dos outros; não precisamos de acreditar
em Deus, e muito menos de o temer: nós somos Deus...
Ao argumento de que esta é
uma atitude amorfa, derrotista, paralisante, eu respondo que me extasio com a
contemplação da Natureza, que me realizo colaborando com ela nas suas múltiplas
manifestações, que me serena aperceber-me da importância absoluta de cada
parcela do Universo e o respeito que isso suscita em mim por tudo quanto me
rodeia, que me comprazo, em arrebatamentos orgásticos, com a harmonia das
esferas celestes, com uma boa reflexão sobre a unicidade do Ser, com a Pastoral
de Beethoven, com a Clepsidra de
Camilo Pessanha, com um quadro da Paula Rego...
O nosso querido
seleccionador, Fernando Santos, disse-nos que foi Deus quem lhe concedeu, a seu
pedido, envolvido em intensa fé, a vitória no Europeu de Futebol. Não malevolamente,
por certo, o seu anúncio perante as câmaras de televisão, nesse glorioso 10 de
Julho de 2016, terá sido no mínimo deselegante para com aqueles seus colegas
que, com igual fervor, requisitaram a Deus semelhante graça. Por que não a tiveram
do seu lado é questão que os crentes remetem para os insondáveis desígnios de
Deus, que terá tido as suas razões, por exemplo, um passado de malandragem ou
um simples grau de menor intensidade na manifestação da fé dos outros seleccionadores...Mas
como compreender o adulto incólume que reza, ao lado da criança esmagada num
terramoto? Foi a fé que o salvou, diz o próprio e, com ele, muitos crentes,
fazendo de Deus um mesquinho simulacro da ganância, da vaidade e do egoísmo
humanos... E já nem refiro as crianças vítimas fatais de catástrofes ao lado de
adultos ateus saudavelmente vivos...
A minha estrada
É uma estrada concreta
de compacto alcatrão
vira à esquerda e à direita
como em qualquer receita
de uma estrada concreta
ou de imagiação
Por ela sigo na vida
às vezes em contra-mão
Não há verso sem reverso
nem partida sem regresso
por uma estrada concreta
ao sabor da inspiração
Parede,
Outubro de 2017
Manuel
Neto
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