segunda-feira, 13 de abril de 2020

REFLEXOS DA PNEUMONIA ATÍPICA


REFLEXOS DA PNEUMONIA ATÍPICA

Os profissionais de saúde estão na primeira linha do atendimento, logo do risco, com a agravante, para a saúde de todos, de que no caso de suspeita de contágio, não se tomando as medidas necessárias de isolamento respiratório, pode ser imperioso colocar toda a Unidade Hospitalar de quarentena.

Esmeraldo Alfarroba[1]

Apesar de todo o mediatismo a que assistimos, não é o primeiro flagelo, nem será o único, muito menos o mais devastador que, neste momento, afecta a Humanidade.
Nunca, tão rapidamente, o receio de uma endemia se reflectiu no nosso quotidiano, através do conhecimento veloz e sem limites, possibilitado pela facilidade do acesso às novas tecnologias da informação.
Os arautos deixaram de ser alguns, mais avisados, académicos ou viajados, sendo a informação um direito de todos, introduzida por quem tem acesso às fontes, difundindo, por vezes de uma forma menor, o sensacional.
Na nossa frente, é possível ver, quase sentir, o sofrimento, o desgaste, a morte do nosso semelhante na China, no Vietname, em Hong Kong, Toronto, Singapura ou Taiwan.
Preocupa-nos saber que neste caso, o perigo, o "inimigo", é aparentemente um novo vírus, do grupo dos coronavírus, com mutações permanentes, facilmente transmitido por via aérea e com um período de incubação de 2 a 7, até 10 dias.
Clinicamente surge "camuflado" como qualquer síndroma gripal - febre elevada (superior a 38º C), calafrios, mialgias, cefaleias e mal estar geral.
Pouco tempo depois os sintomas respiratórios (tosse seca e dispneia), acompanhados de progressiva hipoxemia cerca de 10 a 20% dos casos exigindo ventilação mecânica.
A teleradiografia de tórax inicial pode ser normal, podendo evoluir para infiltrados intersticiais, os quais de focais progridem para mais generalizados.
As análises clinicas revelam, no início, contagem leucocitária normal ou já diminuída, depois a leucopenia com neutropenia e a trombocitopenia são frequentes.
As transaminases hepáticas sobem, o mesmo sucedendo à creatininofosfoquinase (CPK).
A função renal é normal. O curso natural da doença é mais severo, como esperado, nos idosos, diabéticos e doentes imunodeprimidos.
Tem, portanto, tudo o que já sabemos ser usual nas Pneumonias Atípicas provocadas por exemplo por Mycoplasma  pneumoniae, Chlamydia pneumoniae, Legionella pneumophila, Coxiella bumetti ou vírus, não esquecendo os agentes potenciais de Bioterrorismo, tais como a Francisella tularensis, Bacillus antracis ou Yersjnia pestis.
 Distinguem-se de outras pneumonias da comunidade, as clássicas, designadas por típicas, de etiologia bacteriana, que surgem com febre, tosse e expectoração produtiva, condensação bem delimitada, podendo afectar um lobo pulmonar.
Em termos laboratoriais verifica-se leucocitose com neutrofilia e habitualmente boa resposta terapêutica antibiótica.
Como agentes habituais, o Steptococcus pneumoniae (Pneumo cocos), Staphylococcus aureus, Klebsiella pneumoniae, Haemophilus influenzae, ente outros.
Voltando ao nosso tema, a Pneumonia que foi anunciada ao Mundo pelas autoridades chinesas. (com atraso), em Fevereiro deste ano, foi designada na língua inglesa por Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS).
O diagnóstico de certeza é possível, após ser conhecido o genoma do vírus há um mês atrás, através de um teste de Polymerase Chain Reaction (PCR).
Logo no nome fica bem expressa a gravidade da Insuficiência Respiratória, que se traduz por ser uma situação clinica com elevada mortalidade, necessitando de meios hospitalares de suporte muito diferenciados.
As baixas são actualizadas diariamente pela Organização Mundial de Saúde, correspondendo a cerca de 6% dos infectados.
Porém, outro tipo de “baixas” foi também já referenciado:
- por omissão atempada da verdade dos factos, foram demitidos altos responsáveis pela Saúde na China, algo que seria, aliás, impensável neste tipo de regime;
           - entre nós, foi demitido um responsável perante afirmações polémicas na comunicação social.
Actualmente, no meio civil, há um Plano e Intervenção em que tudo está regrado, iniciando-se com linhas de contacto que permitem o acesso de alguém suspeito: doente proveniente de áreas afectadas ou que teve contactos próximos com pessoas doentes dessas mesmas áreas.
Os Hospitais para onde serão dirigidos estão referenciados e foram seleccionados por disporem de condições adequadas, nomeadamente quartos de pressão negativa.
Estes cuidados são fundamentais, pois não esqueçamos que uma das primeiras mortes registadas foi a do médico que contactou com os primeiros casos.
Os profissionais de saúde estão na primeira linha do atendimento, logo do risco, com a agravante, para a saúde de todos, de que no caso de suspeita de contágio, não se tomando as medidas necessárias de isolamento respiratório, pode ser imperioso colocar toda a Unidade Hospitalar de quarentena.
Orgulha-nos que, nas estruturas de Saúde Militar, construídas com o apoio da Engenharia Militar, já dispomos de duas áreas de pressão negativa.
Uma é constituída por uma Unidade de Cuidados Intensivos com 5 camas, 2 quartos de 2 camas e uma sala de técnicas broncológicas e outra constituída por 5 quartos de 2 camas e 1 sala de administração de terapêutica a doentes imunodeprimidos.
A primeira foi preparada a pensar nas Tuberculoses multiresistentes.
A segunda foi já influenciada pelo virar de página mundial ocorrido no dia 11 de Setembro de 2001.
Tal como foi prontamente noticiado, o primeiro caso suspeito em Portugal foi ai internado com todas as condições de segurança e proteção para os profissionais de saúde.
Para além do isolamento de casos de Infecciologia, na prática clinica diária estas áreas são uma reserva para utilização numa situação de Bioterrorismo.
Inserem-se quer na cadeia de evacuação dos meios de saúde militares, quer colaborando com a proteção civil a nível nacional.
Felizmente que, até esta data não se verificou nenhum caso de Síndroma Respiratório Agudo (SRA) em Portugal, tal como não se comprovou nenhum caso de antraz há cerca de dois anos.
Todo o cuidado posto pelos organismos oficiais no planeamento da resposta a estas situações não foi nem será em vão, porque tal como um laborioso exercício simulado, estamos convictos que os ensinamentos registados são a melhor preparação para controlar qualquer situação futura que possa surgir.
No meio militar, conjugando as infraestruturas descritas com a excelência de Laboratórios de Microbiologia e Imunologia, também não descurados, podemos confiar nos meios de que dispomos, prosseguindo com dedicação, criatividade e determinação as modelares reformas visíveis nos Hospitais Militares operadas no virar do milénio.
Revista Portuguesa de Saúde Militar, Ano IV, nº. 1  2003


[1] Cor Méd Director do Serviço Acção Médica do IASFA; Consultor de Pneumologia

quarta-feira, 11 de março de 2020

A condição humana, seguida da crise de valores


Nota preliminar: sou um falso pessimista.

A par de outros saudosismos expressos pelo nosso pendor atavicamente romântico, é frequente dizer-se da nossa querida língua que “já não se fala nem se escreve como antigamente”.
Não partilho do julgamento, porque o contrário se me impõe à clara claridade da evidência e porque, por mais que o peça, ninguém me serve com provas provadas de um tal pátrio declínio. De facto, o que eu vejo no meu diário peregrinar pelas saturadas e saturantes vias da informação é uma vigorosa desenvoltura no falar e no escrever da maior parte dos que se sujeitam à exposição mediática, seja pela escrita, seja pela palavra. O que se diz e escreve hoje é muito mais bem dito e mais bem escrito do que o era antigamente (aí está: mais bem dito e mais bem escrito, e não melhor dito e melhor escrito, como, às vezes, ouvimos e lemos; sem que, porém, daí venha grande mal ao mundo, que pior já, no passado, ouviu e leu). Mergulhem os meus amigos num desses arquivos da rádio, da TV, de um diário, de uma revista... e digam-me se não temos hoje uma língua mais solta, mais harmoniosa, muito mais extensiva em quantidade de praticantes e em qualidade de expressão, do que aquela que nos era dado ouvir e ler no passado, em que o formato era imposto e os falantes e os escrevedores resumidos a um restrito universo de eleitos. Erros e incorrecções? Sim, há, houve e haverá, e que saibam os puristas que assim se faz, evolui e se mantém viva uma língua. É bem possível que, um dia destes, os gramáticos aceitem o melhor dito em desfavor do mais bem dito. Se eu disser que me envergonho da minha escrita, com que às vezes contacto amigos e conhecidos, perante tanta qualidade que por aí vejo, não o faço, garanto com toda a sinceridade, por falsa modéstia. Colunistas como um António Guerreiro, um Álvaro Domingues, um João Miguel Tavares, um Pulido Valente (a terra lhe seja leve), ou mesmo um Frei Bento Domingues..., para tão só falar nalguns dos que mais frequento nas minhas leituras de fim de semana, deixam-me em total prostração e desespero, reduzido ao estado larvar dos simples automatismos das funções vitais. Ohhhhhh!!!! e aquelas crónicas do Herberto Helder que alguém publicou postumamente em em minúsculas (Porto Editora), onde a simbiose escrita/oralidade atinge os picos dos picos do Parnaso em qualidade estética, estilística e de conteúdo!
Como eu partilho, em tão generosa escala, dessa condição humana da inveja e do inconformismo na expressão das nossas capacidades, neste caso, literárias, a ponto de reiteradamente me sentir tentado a desistir, em me vendo diminuído no confronto da comparação! Vale-me, nestes momentos, essoutro impulso, que também nos está no sangue, o da vaidade, que é, no fundo, o móbil de tantas das nossas acções que delicada e eufemisticamente embrulhamos em tonalidades sentimentais. E é exactamente por isso que, desistindo de desistir, aqui estou a falar da condição humana e do mais que se segue, conforme anunciei, na esperança (o tal embrulho) de contribuir para o bem da sociedade, e, quem sabe, da Humanidade, com mais algumas das clarividências que, em horas de ócio, me ocupam laboriosamente o espírito.
È bem recente a condição humana. Na história do nosso sistema solar, a Terra formou-se há 4,5 mil milhões de anos, os primeiros sintomas de vida ocorreram há 3,5 mil milhões, o género Homo há 3 milhões e a espécie Homo sapiens, isto é, nós, há uns minúsculos 300 mil anos. Para aqueles que vêem no Homem a razão de ser do Universo, é frustrante a quota parte que lhe cabe nesta história, sobretudo se tivermos em conta que tão bem e tão saudável andou o planeta sem a condição humana a assistir à sucessão dos dias e das noites. E mesmo para aqueles que simplesmente consideram tal espécie o resumo de toda a perfeição finita, vejamos.
Com uma suposta superior inteligência, a sua marca distintiva, o Homem (sapiens) tornou-se, desde os primórdios, no predador dos predadores do planeta, incluindo o de outras espécies de humanos (de tão longe vem o racismo...), culminando no desenvolvimento de um arsenal de armas capaz de destruir tudo e todos, até a si próprio. Isto é, a sua inteligência não difere muito do instinto de destruir, a título de defesa, tudo o que lhe faça sombra, e muito menos lhe serviu para prevenir, a longo prazo, os efeitos nefastos do desequilíbrio das espécies e dos demais elementos. Com a sua capacidade de previsão a médio prazo, o Homem começou a providenciar os alimentos para o amanhã, desencadeando uma espiral de angústias, desde a busca do incerto trabalho remunerado, até ao medo da insuficiência à mesa de todos os dias. Não lhe bastando o instinto de sobrevivência, foi de descoberta em descoberta acumulando vida e alimentando o sonho da imortalidade, ao mesmo tempo que foi incapaz de prever a saturação das urgências dos hospitais, com o esgotamento dos respectivos clínicos, o corropio de INEM's mobilizados por aflições e alarmes mal fundamentados, e a manutenção e prolongamento indefinido da vida sem qualidade. Conhecendo o valor relativo das coisas, foi acumulando riquezas e bens supérfluos, fazendo depender, da sua posse, a felicidade terrena e, para alguns, o prenúncio da felicidade eterna. Alimentado e acicatado por essa inteligência que lhe promete todas as realizações, vive numa constante insatisfação com o presente, fazendo muitos da ambição desmedida o motor de vida.
A tentação de comparar a condição deste Homo sapiens com a dos irracionais é irresistível. Apesar de o planeta se encontrar na meia idade, envelheceu mais, e perigosamente, nos 300 mil anos de reinado da racionalidade do que nos mais de 3 mil milhões de anos de vida irracional que os antecederam. À serenidade e ritmo cósmicos com que os bichos evoluem sobre a Terra, na satisfação das suas necessidades básicas e de entretenimento, opõe o homem a inconstância do humor nascida das mil e uma preocupações com que tem de fazer pela vida. À simplicidade e equilíbrio proporcionados à Natureza pelo tipo de vida animal opõe a inteligência humana a complexidade, a exploração de recursos até ao nível do esgotamento, a poluição e o desequilíbrio dos elementos. As próprias brilhantes e progressivas realizações materiais e espirituais são para o Homem fonte de desassossego, porquanto nenhuma posição intermédia na escala de valores o satisfaz e, uma vez no topo, não tarda que seja dominado pela disforia do tédio.
Na sua Divina Comédia, ter-se-á esquecido Dante de condenar aos tormentos infernais este ser que tão mal, e, por vezes, tão malevolamente usa a sua inteligência? Tanto não julgo. Mais do que carrasco, este último representante da espécie humana é vítima de um presente envenenado – uma inteligência desproporcionada aos restantes componentes da sua natureza. O resultado é o desperdício, o uso enviesado, o frenesim do imediato facilmente alcançável e, no geral, um sofrimento difuso a ensombrar-nos a existência por nunca atingirmos a serenidade de deixar de desejar.
Como em tudo, não há verso sem reverso, há o dentro e o fora, o claro e o escuro , a noite e o dia, as trevas e a luz. A minha descrição quase apocalíptica tem um lado luminoso. Com a mesma inteligência que o tem levado por tantos esconsos e ínvios caminhos, este Homem foi capaz de construir uma história de valores relacionais, éticos e estéticos em constante crescendo de progressão.
Verberamos agora os fundamentalismos de algumas vertentes religiosas, mas esquecemos que, antes, foi esse o estado anímico de todas as sociedades, e que tempos houve em que as consciências eram perscrutadas até ao mais íntimo de si, com instituições religiosas e civis em promíscuo conluio a aplicarem as torturas mais imaginosas e cruéis aos alegados desmandos da ortodoxia. No século passado, o ritmo de vida e os comportamentos da maior parte das populações eram ainda regulados pelos tempos litúrgicos e pelas imposições e interditos canónicos. Poderá parecer deveras romântico, seguro e apaziguador um toque das avé-marias a ditar o fim das brincadeiras ao crepúsculo, ou os rituais e tempos definidos para as relações com o divino e com o profano. Mas só isso, porque não há nada que pague a actual liberdade religiosa, comparada com a degradação e o aviltamento da dignidade humana atingidos nessas sociedades articuladamente teocráticas.
O trabalho, hoje, é escravizante, sim. Mas esta Humanidade há-de ser capaz de humanizar a escravocrata tecnologia que está a dominar o dia a dia do trabalhador, como antes resolveu problemas como o das infindáveis horas de trabalho, das condições desumanas em que o mesmo decorria, do trabalho infantil, da remuneração de miséria.
Nós, os da primeira metade do século XX, sabemos quais eram os cuidados de saúde facultados pelas instituições públicas: nenhuns, por norma, ou, onde as havia, por uma ou outra Misericórdia. Hoje, com muitas carências, ainda, mas é o que sabemos...
Sabemos também como era o poder, nas suas diversas variantes: discricionário, prepotente, elitista, violento, sacralizado. Hoje lamentamos que, aos que o exercem, lhes seja exigido, em demasia, a contenção, a proporcionalidade, o bom senso, a estrita observância da lei, o que, sobretudo em situações extremas, leva à insegurança, à desmotivação, ao desânimo e, no limite, a enfermidades do foro psicológico. È verdade, e há que, politicamente, enfrentar esse problema, que é grave, e resolvê-lo. Entretanto, quantos atropelos e injustiças não foram evitados com o respeito que a sociedade civil foi exigindo para os administrados!
As mesmas relações podemos estabelecer noutros domínios como o do acesso ao ensino, à justiça, à administração pública, o direito à informação e à liberdade de expressão, à liberdade de reunião, o reconhecimento e os direitos das minorias, o antirracismo (e outros ismos), a igualdade de género, o direito à diferença, o respeito pelo ambiente... As sensibilidades geradas, na sociedade em geral, em torno destas temáticas estão a fazer delas, em dignificação e respeito, realidades totalmente distintas do que eram há décadas atrás. Nalguns casos com a denúncia de uma sociedade dominada por preconceitos embrulhados em refinada hipocrisia.
Eu sei: ele há tanta guerra, tanta fome, tanta doença, tanta injustiça, tantas incompetências, tantas assimetrias!..., e há que dizê-lo e repeti-lo até à exaustão e à sua total erradicação. Também sei que há, hoje, uma crise de valores, mas de uns que não serviam para nada, ou até nos aviltavam e envergonham, a favor de outros que dizem bem à excelência e à dignidade que costumamos associar a este conjunto de seres inteligentes e sensíveis a que chamamos Humanidade.
Hei-de escrever um dia em como a filosofia, a estética, a arte e o artesanato constituem, esses sim, os domínios em que a espécie humana verdadeiramente se agiganta relativamente às demais. Porque nisto de prover às exigências do corpo, ficamos muito aquém da bicharada.

O velho e sua mãe
ao Fernando Pessoa
a Rimbault
em desagravo das urgências nos hospitais


Tenho um torcicolo de bronze
a martelar-me as meninges
(tu com esse ar de monge
só finges...)
Levou-me o inem. A sirene
clamava estridentemente
e a populaça na praça
-é velho. Que idade tem?
E quem será sua mãe-
perguntava condolente.
À mesa das assistências
triagens
conspirações
o físico fez reticências:
que não. Não tinha mão,
nem na manga soluções.
Com duas manchas do bronze,
uma de lado a lado,
voltei já morto, e bem.
Nas intermitências da morte
a sorte que a gente tem!

Parede, fevereiro de 2020
Manuel Neto