quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

 Embora já de Junho passado acho adequado à época que se avizinha


"Se a felicidade

 Se a felicidade consistisse na posse de bens materiais, os ricos não se suicidariam, não se rodeariam de segurança para aliviarem os temores pela sua sobrevivência, a pessoal e a do património, não compensariam o tédio com o recurso aos paraísos artificiais proporcionados pelas drogas, não se sentiriam insatisfeitos quando atingidos os objectivos, não conheceriam a dor da necessidade, não teriam angústias nem depressões...

Sim, haverá ricos felizes, mas não à custa exclusiva dos bens possuídos...

 Se a felicidade consistisse nas vivências espirituais, os monges não fariam da clausura um inferno  com o cansaço das Horas, a mortal rotina, a inveja, as murmurações, a maledicência, os ardis, as simulações, os ódios (ambiente monástico denunciado pelo Papa Francisco)...

Sim, haverá monges felizes, mas não à exclusiva custa das vivências espirituais...

 Se a felicidade consistisse na beleza física, as misses universo, e outras personalidades equivalentes, não seriam acometidas de pânicos de insegurança, nem de transtornos alimentares, nem de doenças imaginárias, nem de crises de ansiedade, nem de insatisfação, nem de falta de auto-estima, nem de angústias pelo ignoto futuro...

Sim, haverá belos físicos felizes, mas não à custa exclusiva da beleza física...

 Se a felicidade consistisse em ter saúde, a pessoa saudável não contrairia doenças psicossomáticas, não correria para as urgências ao mínimo sinal de desconforto, não faria das doenças saturante tema de conversa, não se deixaria dominar por obsessões alimentares, não se deixaria absorver pelos cuidados sanitários, não duvidaria do diagnóstico clínico, não daria em  hipocondríaco...

Sim, há pessoas saudáveis que são felizes, mas não à exclusiva custa da excelência da sua saúde...

 Se a felicidade consistisse no amor, os amorosos nunca entrariam em rota de colisão, não conheceriam o tédio das relações, não se roeriam de ciúmes, não aceitariam os prazeres que não fossem partilhados com igual intensidade, não acabariam nunca o relacionamento dominados pelo ódio...

Sim, há amorosos felizes, mas não exclusivamente porque se amam...

 Se a felicidade consistisse no êxito profissional, os profissionais de êxito não teriam dificuldade em gerir os momentos de stress, nunca se sentiriam no limite das suas capacidades físicas, não experimentariam noites de insónia, não compensariam as suas ansiedades com calmantes, não se angustiariam com o êxito dos outros...

Sim, haverá felizes profissionais de êxito, mas não à exclusiva custa do êxito alcançado.

 Se a felicidade consistisse no génio artístico, não haveria, no génio artístico, comportamentos desviantes baseados na agressividade, na auto-mutilação, no egoísmo, no suicídio, na inveja, na mesquinhez de sentimentos, na depressão, na ansiedade, no sentimento de incompletude...

Sim, haverá felizes génios artísticos, mas não exclusivamente à custa da genialidade artística...

 Se...

 O que é, então, a felicidade? Ah! não sei!

Sei que não é um estado permanente, pois que a permanência de qualquer estado é a rotina, e a rotina é cansaço e morte. Tenho para mim que até os bem-aventurados, sobretudo os mais antigos, que entraram no Paraíso seduzidos pela felicidade eterna, se sintam já torturados pelo desejo de um estagiozinho de labaredas no Inferno, como de pão para a boca. Assim, a felicidade só pode ser feita de momentos, mais ou menos prolongados, dependendo isso de cada um e das circunstâncias. E há momentos desses na saúde e na doença, na carência e na abundância, na guerra e na paz, na virtude e, até, no pecado.

Há duas máximas que talvez nos ajudem a uma aproximação ao conceito e, essas, são bem antigas, sinal de que, no conceito, pouco mudou ao longo dos tempos: uma, carpe diem, expressão latina extraída da Ode 11 do Livro I das Odes de Horácio, que podemos traduzir por aproveita o momento (já que – diz o  poeta a completar o verso – o futuro é incerto); outra, age quod agis, que traduzimos por faz, de consciência plena, o que estás a fazer.

Tantas coisas belas, harmoniosas, simples, nos passam despercebidas aos sentidos ao longo das 24 horas do dia, só porque, ensombrada a mente pelos automatismos da rotina, pela memória de frustrações passadas e pela incerteza do que há-de vir, não damos por elas, e muito menos da sua capacidade de nos equilibrarem na balança dos sentimentos.

Sei também que a felicidade não condiz com a obtenção dos desideratos a que nos propomos - quer sejam eles do âmbito do ter, quer do ser – sem que passem pelo crivo da dor ou da superação de obstáculos: o que se obtém sem dificuldade ou esforço, sejam estes entraves de que nível forem, não produz satisfação, e sem satisfação não há felicidade.

Parece-me ainda estar nas nossas mãos potenciar em intensidade e duração os momentos de felicidade, se curarmos em pautar sempre as nossas acções pelos critérios da ética – presentes na simplicidade do aforismo “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”.

 Meu amigo, este é o resultado das minhas reflexões em tempo de pós-covid 19, mas de igual confinamento domiciliário em razão da minha saúde. Podes mandá-lo às urtigas e dizer-me “-Não, não é nada disso. Felicidade ninguém sabe o que é!” e eu dou-te toda a razão...

 

 

Parede, 30 de Junho de 2022

            Manuel Neto"