quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

 Embora já de Junho passado acho adequado à época que se avizinha


"Se a felicidade

 Se a felicidade consistisse na posse de bens materiais, os ricos não se suicidariam, não se rodeariam de segurança para aliviarem os temores pela sua sobrevivência, a pessoal e a do património, não compensariam o tédio com o recurso aos paraísos artificiais proporcionados pelas drogas, não se sentiriam insatisfeitos quando atingidos os objectivos, não conheceriam a dor da necessidade, não teriam angústias nem depressões...

Sim, haverá ricos felizes, mas não à custa exclusiva dos bens possuídos...

 Se a felicidade consistisse nas vivências espirituais, os monges não fariam da clausura um inferno  com o cansaço das Horas, a mortal rotina, a inveja, as murmurações, a maledicência, os ardis, as simulações, os ódios (ambiente monástico denunciado pelo Papa Francisco)...

Sim, haverá monges felizes, mas não à exclusiva custa das vivências espirituais...

 Se a felicidade consistisse na beleza física, as misses universo, e outras personalidades equivalentes, não seriam acometidas de pânicos de insegurança, nem de transtornos alimentares, nem de doenças imaginárias, nem de crises de ansiedade, nem de insatisfação, nem de falta de auto-estima, nem de angústias pelo ignoto futuro...

Sim, haverá belos físicos felizes, mas não à custa exclusiva da beleza física...

 Se a felicidade consistisse em ter saúde, a pessoa saudável não contrairia doenças psicossomáticas, não correria para as urgências ao mínimo sinal de desconforto, não faria das doenças saturante tema de conversa, não se deixaria dominar por obsessões alimentares, não se deixaria absorver pelos cuidados sanitários, não duvidaria do diagnóstico clínico, não daria em  hipocondríaco...

Sim, há pessoas saudáveis que são felizes, mas não à exclusiva custa da excelência da sua saúde...

 Se a felicidade consistisse no amor, os amorosos nunca entrariam em rota de colisão, não conheceriam o tédio das relações, não se roeriam de ciúmes, não aceitariam os prazeres que não fossem partilhados com igual intensidade, não acabariam nunca o relacionamento dominados pelo ódio...

Sim, há amorosos felizes, mas não exclusivamente porque se amam...

 Se a felicidade consistisse no êxito profissional, os profissionais de êxito não teriam dificuldade em gerir os momentos de stress, nunca se sentiriam no limite das suas capacidades físicas, não experimentariam noites de insónia, não compensariam as suas ansiedades com calmantes, não se angustiariam com o êxito dos outros...

Sim, haverá felizes profissionais de êxito, mas não à exclusiva custa do êxito alcançado.

 Se a felicidade consistisse no génio artístico, não haveria, no génio artístico, comportamentos desviantes baseados na agressividade, na auto-mutilação, no egoísmo, no suicídio, na inveja, na mesquinhez de sentimentos, na depressão, na ansiedade, no sentimento de incompletude...

Sim, haverá felizes génios artísticos, mas não exclusivamente à custa da genialidade artística...

 Se...

 O que é, então, a felicidade? Ah! não sei!

Sei que não é um estado permanente, pois que a permanência de qualquer estado é a rotina, e a rotina é cansaço e morte. Tenho para mim que até os bem-aventurados, sobretudo os mais antigos, que entraram no Paraíso seduzidos pela felicidade eterna, se sintam já torturados pelo desejo de um estagiozinho de labaredas no Inferno, como de pão para a boca. Assim, a felicidade só pode ser feita de momentos, mais ou menos prolongados, dependendo isso de cada um e das circunstâncias. E há momentos desses na saúde e na doença, na carência e na abundância, na guerra e na paz, na virtude e, até, no pecado.

Há duas máximas que talvez nos ajudem a uma aproximação ao conceito e, essas, são bem antigas, sinal de que, no conceito, pouco mudou ao longo dos tempos: uma, carpe diem, expressão latina extraída da Ode 11 do Livro I das Odes de Horácio, que podemos traduzir por aproveita o momento (já que – diz o  poeta a completar o verso – o futuro é incerto); outra, age quod agis, que traduzimos por faz, de consciência plena, o que estás a fazer.

Tantas coisas belas, harmoniosas, simples, nos passam despercebidas aos sentidos ao longo das 24 horas do dia, só porque, ensombrada a mente pelos automatismos da rotina, pela memória de frustrações passadas e pela incerteza do que há-de vir, não damos por elas, e muito menos da sua capacidade de nos equilibrarem na balança dos sentimentos.

Sei também que a felicidade não condiz com a obtenção dos desideratos a que nos propomos - quer sejam eles do âmbito do ter, quer do ser – sem que passem pelo crivo da dor ou da superação de obstáculos: o que se obtém sem dificuldade ou esforço, sejam estes entraves de que nível forem, não produz satisfação, e sem satisfação não há felicidade.

Parece-me ainda estar nas nossas mãos potenciar em intensidade e duração os momentos de felicidade, se curarmos em pautar sempre as nossas acções pelos critérios da ética – presentes na simplicidade do aforismo “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”.

 Meu amigo, este é o resultado das minhas reflexões em tempo de pós-covid 19, mas de igual confinamento domiciliário em razão da minha saúde. Podes mandá-lo às urtigas e dizer-me “-Não, não é nada disso. Felicidade ninguém sabe o que é!” e eu dou-te toda a razão...

 

 

Parede, 30 de Junho de 2022

            Manuel Neto"

sábado, 11 de dezembro de 2021

 "Está tudo ligado"



O que aconteceu em Glasgow (COP 26, de 31 de Outubro a 12 de Novembro) foi o lamento elegíaco que antecede o fim próximo da Humanidade.

É certo que está escrito nas estrelas o fim de todos os ciclos em que se organiza e evolui a Natureza (Universo, Cosmos...), e assim será do nosso Sol, com todos os corpos que o orbitam. À boa maneira da insensibilidade racional que nos caracteriza quanto a acontecimentos projectados para um futuro longínquo, este fim em nada nos perturba, embora já ele devesse ser tido em conta nas reflexões filosóficas do ser que somos, teimosamente obcecados pela imortalidade. O que não estaria nas contas de um observador extraterrestre, que de um ponto fixo do Universo acompanhasse o evoluir da Terra desde a sua formação, era que em tanto a presença do Homem tenha acelerado a progressão geométrica de causas e efeitos na degradação material e existencial a que chegámos.

A culpa é do vizinho, dizemos, sacudindo a água do capote, e se não é do vizinho é do Governo, ou dos governos, reforçamos, atirando com a responsabilidade para cada vez mais longe. E, no entanto, é bem verdade que, tomados de per si cada personagem e cada acontecimento na desastrosa acção desta tragicomédia, não há culpas personalizadas. E a razão é simples: está tudo ligado, sendo a actual realidade planetária o produto da interacção de uma multiplicidade de factores de cujas consequências só a posteriori nos apercebemos, já quando nos confundimos nela como num todo coerente e indestrutível. 

Com a consciência de que estou a iniciar in media res esta minha incursão argumentativa ( para trás fica, por exemplo, o Big Bang, como a causa última da problemática em que nos encontramos), coloco, como causa determinante da aceleração em que tem progredido a degradação do planeta, o presente envenenado que foi dado ao Homem: a sua inteligência. 

Os irracionais não têm passado nem futuro; vivem, sempre viveram, o presente e só o presente. A gazela, que num momento foge para escapar ao predador que a persegue, se adrega escapar, no momento seguinte já está a tosar a erva sem outra preocupação que não seja a de saciar a fome que nesse momento a atormenta. Não assim com o Homem. Inventor do tempo a três dimensões, passou a fazer da vida um circuito de abstrações, cálculos, planeamentos e, até, especulações, com que se vai projectando em realizações que  indelevelmente o marcam e transformam como ser individual e relacional. Senhor do raciocínio, cavalgou a curiosidade insaciável de desvendar os mistérios da Natureza, sempre à custa do desgaste dela. À posse de um bem de que se satura ou em que rapidamente descobre insuficiências hedonísticas, opõe a aquisição de outro numa progressão sem fim de avaliações e inconformismos... Tudo porque dispõe de uma inteligência que não lhe dá tréguas no afã de superar a meta logo que atingida. Como esta faculdade, que consideramos o ápice da superior condição humana, se revela um atropelo àqueloutra que igualmente definimos como marca supremamente distintiva dessa mesma condição, a liberdade! Liberdade...? Mas que liberdade? É mais livre o homem cujas decisões lhe são impostas pela inteligência, do que o animal que somente age segundo as leis da necessidade? 

Uma segunda causa é o deslumbramento, essa afecção da alma que nos coloca em ufana autocontemplação a cada nova realização do intelecto, e que nos impede de vermos e sentirmos para além das consequências que directamente nos afectam. Disso nos dá conta a história da evolução da espécie, cuja inteligência vai sendo capaz de tudo menos de prever as consequências a longo prazo de uma descoberta, de uma atitude, de um comportamento ( a consciência que hoje se tem do “efeito borboleta” é muito recente), e muito menos de prevenir as que lhe possam ser prejudiciais, ou mesmo fatais.

Deslumbrou-se o inventor da roda, porque esta o aliviou do esforço de carregar aos ombros o barro do tegúrio e o fruto das colheitas... Mas foi incapaz de prever quanto este aparentemente inofensivo instrumento haveria de mexer com as nossas vidas, imiscuindo-se em todas as pregas das mais variadas indústrias, acelerando-nos o dia a dia no frenético encurtamento do tempo e do espaço, induzindo-nos a esventrar a terra e a saturar os ares à procura de alimento que lhe acelere as rotações e potencie as serventias.

Deslumbrou-se o inventor da agricultura quando deu por si a comer, sem ter de sair do abrigo, os grãos da espelta que ele próprio semeara e reservara em quantidade... Mas não lhe ocorreu que, num infinito círculo vicioso cada vez mais amplificado, as reservas da sua espelta e de outras iguarias que foi juntando ao cardápio nos levariam, num crescendo recíproco, aos aglomerados populacionais até se chegar a Tóquio. Tóquio? Sim, Tóquio, 30 milhões de habitantes (três vezes a população de Portugal), apenas o maior dos aglomerados, seguido de perto por muitos outros por esse planeta fora. Alimentar tanta boca junta é, por si só, uma tarefa ciclópica; fazê-lo sem recorrer a agricultura e pecuária intensivas, com todos os gravíssimos problemas ambientais que lhe estão associados, não passa de um sonho irrealizável, por mais cimeiras que aconteçam e hortas biológicas que as autarquias promovam. Ainda não compreendi a razão por que não ocupa esta questão o centro das preocupações quando se fala em aquecimento global, desequilíbrio ambiental, ofensas à biodiversidade... É que poderemos (?...), um dia, prescindir dos combustíveis fósseis, eleger definitivamente a bicicleta como meio de transporte, fazer do bairro o nosso mundo... mas não dispensaremos, nunca, o pão da boca (sete mil milhões delas), e o que se junta ao pão, e os ingredientes que é necessário lançar à terra, e a logística da produção, e da conservação, e do transporte, e da distribuição... Até nos falta o fôlego neste oceano de componentes em rigorosa e necessária articulação, mesmo que as pocilgas e os estábulos da produção em série das queridas proteínas dêm lugar às gaiolas de insectos na varanda...

Reverenciaram a Hipócrates os seus contemporâneos como o Pai da Medicina. Porém, nem um nem outros calcularam o triunfal percurso do diagnóstico e da mezinha, que nos foram prolongando a vida e criando a ilusão da imortalidade. Como resultado, temos hoje mais, muito mais, tempo de vida, mas com uma boa parte dela em lares, nas ambulâncias, nas urgências e nas camas dos hospitais, ou entregue a curadores que vão desesperando por incapacidade emocional e física de acompanhar e suavizar a agonia da degradação do corpo e do espírito em que nos vamos perecendo. Uma tão estranha forma de vida, a exigir cada vez mais recursos, cada vez mais insuficientes...

Ao deslumbramento total assistimos já em nossos dias com os polímeros sintéticos a invadir tudo o que é indústria e transacções comerciais. Digo “em nossos dias”, porque foi tudo tão rápido, que, para uma Idade que ainda mal começou (em 1905, com a síntese da baquelite), a chamamos já de Idade do Plástico, com todos os ingredientes identitários de uma nova realidade em existência e consistência plenas. Em tão pouco tempo decorrido, não há hoje ramo de actividade humana que não esteja, de alguma forma, dependente desse primeiro material  sintético produzido pelo Homem. Alarma-se a comunidade internacional com a sua omnipresença, acrescida de uma prolongada durabilidade, estimada em séculos, ou com a sua degradação em micropartículas, que vão incorporando e intoxicando os organismos vivos. Mas, mais uma vez, não cedamos a ilusões: o plástico veio para ficar e fazer parte das nossas vidas.


Há dois tempos em Glasgow. 

No primeiro tempo, os que lá se sentaram em representação dos 197 países deste globo a sufocar em dióxido de carbono, porfiaram, quero crer que em sintonia com os respectivos governantes, em declarar-se preocupados e apreensivos com as condições climáticas que nos vão perspectivando um fim próximo envolto em labaredas. Não havendo varinha de condão que, num instante e sem custos para ninguém, nos faça regressar pelo menos ao clima prè-industrial, logo ali tomaram a palavra, em justa reclamação, aqueles que ainda não saborearam a boa vida proporcionada pelas poluentes revoluções industriais, agrícolas e tecnológicas, ainda que essas revoluções sejam devedoras, em grande parte, à sua força de trabalho e às suas matérias primas. Assim, das medidas acordadas se poderá dizer que, não sendo as melhores, foram as possíveis, repondo um pouco de justiça num contexto de desigualdade inter pares no que respeita a padrões de vida dos povos representados. 

No segundo tempo, estamos já na viagem de regresso às nuas e cruas realidades locais, feitas de pessoas, relacionamentos e necessidades imediatas, ou de bens que, depois de adquiridos, se nos colam como uma segunda natureza e, por isso, imprescindíveis. E o que se segue é o discurso da produção, do reforço das garantias do consumo, do crescimento económico, da criação de riqueza, da melhoria das condições de vida..., isto é, tudo aquilo que contraria a exequibilidade das medidas acordadas na cimeira. Hipocrisia, cinismo, falta de coragem dos governantes?... Nada disso, apenas uma realidade tecida de contradições inelutáveis a envolver governantes e governados: aqueles, de ânimo dividido entre a preservação do planeta e a garantia de bem estar dos que os elegeram; estes, exigindo, por um lado, decisões que garantam o mesmo planeta viável para filhos e netos e, por outro, medidas que garantam abastecimento a tempo e horas de bens de consumo, fortalecimento das redes de assistência sanitária, reforço das estruturas educacionais, apoios certos à produção, disponibilidade dos diversos tipos de energia, fiabilidade e conforto dos transportes públicos, estabilidade e promoção laboral...etc., etc., etc. …

Não irei tão longe dizendo que estamos irremediavelmente perdidos já no curto prazo. Há um fosso definitivo entre os polos daquelas contradições, mas a mesma inteligência que nos levou a elas há-de ser capaz de as suavizar e acrescentar a “...este viver aqui neste papel descripto” (Ângelo de Lima, 1872-1921, em carta dirigida a Miguel Bombarda) mais uns anos, talvez uns bons séculos, de entusiasmos, desânimos, ansiedades, prazeres e desprazeres. Direi mesmo, com Camões (“Sobolos rios que vão...”),

...que do que mal cantei

a palinódia já canto...

Era possível outra maneira de evoluir? Lograríamos de outra forma chegar à catedral gótica, a Taj Mahal, à Pietá, à Noite estrelada (Van Gogh), à sinfonia, ao Hey Jude, ao D.Quixote de la Mancha, à especulação filosófica, aos segredos do átomo, ou mesmo à organização espacial e estética de uma grande cidade...? Nunca o saberemos. Sabemos apenas que esta é a nossa realidade e, porque não há comparação, o melhor dos mundos. Sirvamo-nos dele, degustêmo-lo, moderadamente, para que dure mais um pouco...


Fio dental


Ah! fio dental, fio dental...

Fi--------------------------------o den------------TAL

Ui! esse intersticial fio dental!

Viver sem fio dental? ----------OH!

antes o aquecimento global!

Fio--------------------------------------------DENTAL

                   intersticial...


Parede, 10 de dezembro de 2021

Manuel N.


segunda-feira, 13 de abril de 2020

REFLEXOS DA PNEUMONIA ATÍPICA


REFLEXOS DA PNEUMONIA ATÍPICA

Os profissionais de saúde estão na primeira linha do atendimento, logo do risco, com a agravante, para a saúde de todos, de que no caso de suspeita de contágio, não se tomando as medidas necessárias de isolamento respiratório, pode ser imperioso colocar toda a Unidade Hospitalar de quarentena.

Esmeraldo Alfarroba[1]

Apesar de todo o mediatismo a que assistimos, não é o primeiro flagelo, nem será o único, muito menos o mais devastador que, neste momento, afecta a Humanidade.
Nunca, tão rapidamente, o receio de uma endemia se reflectiu no nosso quotidiano, através do conhecimento veloz e sem limites, possibilitado pela facilidade do acesso às novas tecnologias da informação.
Os arautos deixaram de ser alguns, mais avisados, académicos ou viajados, sendo a informação um direito de todos, introduzida por quem tem acesso às fontes, difundindo, por vezes de uma forma menor, o sensacional.
Na nossa frente, é possível ver, quase sentir, o sofrimento, o desgaste, a morte do nosso semelhante na China, no Vietname, em Hong Kong, Toronto, Singapura ou Taiwan.
Preocupa-nos saber que neste caso, o perigo, o "inimigo", é aparentemente um novo vírus, do grupo dos coronavírus, com mutações permanentes, facilmente transmitido por via aérea e com um período de incubação de 2 a 7, até 10 dias.
Clinicamente surge "camuflado" como qualquer síndroma gripal - febre elevada (superior a 38º C), calafrios, mialgias, cefaleias e mal estar geral.
Pouco tempo depois os sintomas respiratórios (tosse seca e dispneia), acompanhados de progressiva hipoxemia cerca de 10 a 20% dos casos exigindo ventilação mecânica.
A teleradiografia de tórax inicial pode ser normal, podendo evoluir para infiltrados intersticiais, os quais de focais progridem para mais generalizados.
As análises clinicas revelam, no início, contagem leucocitária normal ou já diminuída, depois a leucopenia com neutropenia e a trombocitopenia são frequentes.
As transaminases hepáticas sobem, o mesmo sucedendo à creatininofosfoquinase (CPK).
A função renal é normal. O curso natural da doença é mais severo, como esperado, nos idosos, diabéticos e doentes imunodeprimidos.
Tem, portanto, tudo o que já sabemos ser usual nas Pneumonias Atípicas provocadas por exemplo por Mycoplasma  pneumoniae, Chlamydia pneumoniae, Legionella pneumophila, Coxiella bumetti ou vírus, não esquecendo os agentes potenciais de Bioterrorismo, tais como a Francisella tularensis, Bacillus antracis ou Yersjnia pestis.
 Distinguem-se de outras pneumonias da comunidade, as clássicas, designadas por típicas, de etiologia bacteriana, que surgem com febre, tosse e expectoração produtiva, condensação bem delimitada, podendo afectar um lobo pulmonar.
Em termos laboratoriais verifica-se leucocitose com neutrofilia e habitualmente boa resposta terapêutica antibiótica.
Como agentes habituais, o Steptococcus pneumoniae (Pneumo cocos), Staphylococcus aureus, Klebsiella pneumoniae, Haemophilus influenzae, ente outros.
Voltando ao nosso tema, a Pneumonia que foi anunciada ao Mundo pelas autoridades chinesas. (com atraso), em Fevereiro deste ano, foi designada na língua inglesa por Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS).
O diagnóstico de certeza é possível, após ser conhecido o genoma do vírus há um mês atrás, através de um teste de Polymerase Chain Reaction (PCR).
Logo no nome fica bem expressa a gravidade da Insuficiência Respiratória, que se traduz por ser uma situação clinica com elevada mortalidade, necessitando de meios hospitalares de suporte muito diferenciados.
As baixas são actualizadas diariamente pela Organização Mundial de Saúde, correspondendo a cerca de 6% dos infectados.
Porém, outro tipo de “baixas” foi também já referenciado:
- por omissão atempada da verdade dos factos, foram demitidos altos responsáveis pela Saúde na China, algo que seria, aliás, impensável neste tipo de regime;
           - entre nós, foi demitido um responsável perante afirmações polémicas na comunicação social.
Actualmente, no meio civil, há um Plano e Intervenção em que tudo está regrado, iniciando-se com linhas de contacto que permitem o acesso de alguém suspeito: doente proveniente de áreas afectadas ou que teve contactos próximos com pessoas doentes dessas mesmas áreas.
Os Hospitais para onde serão dirigidos estão referenciados e foram seleccionados por disporem de condições adequadas, nomeadamente quartos de pressão negativa.
Estes cuidados são fundamentais, pois não esqueçamos que uma das primeiras mortes registadas foi a do médico que contactou com os primeiros casos.
Os profissionais de saúde estão na primeira linha do atendimento, logo do risco, com a agravante, para a saúde de todos, de que no caso de suspeita de contágio, não se tomando as medidas necessárias de isolamento respiratório, pode ser imperioso colocar toda a Unidade Hospitalar de quarentena.
Orgulha-nos que, nas estruturas de Saúde Militar, construídas com o apoio da Engenharia Militar, já dispomos de duas áreas de pressão negativa.
Uma é constituída por uma Unidade de Cuidados Intensivos com 5 camas, 2 quartos de 2 camas e uma sala de técnicas broncológicas e outra constituída por 5 quartos de 2 camas e 1 sala de administração de terapêutica a doentes imunodeprimidos.
A primeira foi preparada a pensar nas Tuberculoses multiresistentes.
A segunda foi já influenciada pelo virar de página mundial ocorrido no dia 11 de Setembro de 2001.
Tal como foi prontamente noticiado, o primeiro caso suspeito em Portugal foi ai internado com todas as condições de segurança e proteção para os profissionais de saúde.
Para além do isolamento de casos de Infecciologia, na prática clinica diária estas áreas são uma reserva para utilização numa situação de Bioterrorismo.
Inserem-se quer na cadeia de evacuação dos meios de saúde militares, quer colaborando com a proteção civil a nível nacional.
Felizmente que, até esta data não se verificou nenhum caso de Síndroma Respiratório Agudo (SRA) em Portugal, tal como não se comprovou nenhum caso de antraz há cerca de dois anos.
Todo o cuidado posto pelos organismos oficiais no planeamento da resposta a estas situações não foi nem será em vão, porque tal como um laborioso exercício simulado, estamos convictos que os ensinamentos registados são a melhor preparação para controlar qualquer situação futura que possa surgir.
No meio militar, conjugando as infraestruturas descritas com a excelência de Laboratórios de Microbiologia e Imunologia, também não descurados, podemos confiar nos meios de que dispomos, prosseguindo com dedicação, criatividade e determinação as modelares reformas visíveis nos Hospitais Militares operadas no virar do milénio.
Revista Portuguesa de Saúde Militar, Ano IV, nº. 1  2003


[1] Cor Méd Director do Serviço Acção Médica do IASFA; Consultor de Pneumologia

quarta-feira, 11 de março de 2020

A condição humana, seguida da crise de valores


Nota preliminar: sou um falso pessimista.

A par de outros saudosismos expressos pelo nosso pendor atavicamente romântico, é frequente dizer-se da nossa querida língua que “já não se fala nem se escreve como antigamente”.
Não partilho do julgamento, porque o contrário se me impõe à clara claridade da evidência e porque, por mais que o peça, ninguém me serve com provas provadas de um tal pátrio declínio. De facto, o que eu vejo no meu diário peregrinar pelas saturadas e saturantes vias da informação é uma vigorosa desenvoltura no falar e no escrever da maior parte dos que se sujeitam à exposição mediática, seja pela escrita, seja pela palavra. O que se diz e escreve hoje é muito mais bem dito e mais bem escrito do que o era antigamente (aí está: mais bem dito e mais bem escrito, e não melhor dito e melhor escrito, como, às vezes, ouvimos e lemos; sem que, porém, daí venha grande mal ao mundo, que pior já, no passado, ouviu e leu). Mergulhem os meus amigos num desses arquivos da rádio, da TV, de um diário, de uma revista... e digam-me se não temos hoje uma língua mais solta, mais harmoniosa, muito mais extensiva em quantidade de praticantes e em qualidade de expressão, do que aquela que nos era dado ouvir e ler no passado, em que o formato era imposto e os falantes e os escrevedores resumidos a um restrito universo de eleitos. Erros e incorrecções? Sim, há, houve e haverá, e que saibam os puristas que assim se faz, evolui e se mantém viva uma língua. É bem possível que, um dia destes, os gramáticos aceitem o melhor dito em desfavor do mais bem dito. Se eu disser que me envergonho da minha escrita, com que às vezes contacto amigos e conhecidos, perante tanta qualidade que por aí vejo, não o faço, garanto com toda a sinceridade, por falsa modéstia. Colunistas como um António Guerreiro, um Álvaro Domingues, um João Miguel Tavares, um Pulido Valente (a terra lhe seja leve), ou mesmo um Frei Bento Domingues..., para tão só falar nalguns dos que mais frequento nas minhas leituras de fim de semana, deixam-me em total prostração e desespero, reduzido ao estado larvar dos simples automatismos das funções vitais. Ohhhhhh!!!! e aquelas crónicas do Herberto Helder que alguém publicou postumamente em em minúsculas (Porto Editora), onde a simbiose escrita/oralidade atinge os picos dos picos do Parnaso em qualidade estética, estilística e de conteúdo!
Como eu partilho, em tão generosa escala, dessa condição humana da inveja e do inconformismo na expressão das nossas capacidades, neste caso, literárias, a ponto de reiteradamente me sentir tentado a desistir, em me vendo diminuído no confronto da comparação! Vale-me, nestes momentos, essoutro impulso, que também nos está no sangue, o da vaidade, que é, no fundo, o móbil de tantas das nossas acções que delicada e eufemisticamente embrulhamos em tonalidades sentimentais. E é exactamente por isso que, desistindo de desistir, aqui estou a falar da condição humana e do mais que se segue, conforme anunciei, na esperança (o tal embrulho) de contribuir para o bem da sociedade, e, quem sabe, da Humanidade, com mais algumas das clarividências que, em horas de ócio, me ocupam laboriosamente o espírito.
È bem recente a condição humana. Na história do nosso sistema solar, a Terra formou-se há 4,5 mil milhões de anos, os primeiros sintomas de vida ocorreram há 3,5 mil milhões, o género Homo há 3 milhões e a espécie Homo sapiens, isto é, nós, há uns minúsculos 300 mil anos. Para aqueles que vêem no Homem a razão de ser do Universo, é frustrante a quota parte que lhe cabe nesta história, sobretudo se tivermos em conta que tão bem e tão saudável andou o planeta sem a condição humana a assistir à sucessão dos dias e das noites. E mesmo para aqueles que simplesmente consideram tal espécie o resumo de toda a perfeição finita, vejamos.
Com uma suposta superior inteligência, a sua marca distintiva, o Homem (sapiens) tornou-se, desde os primórdios, no predador dos predadores do planeta, incluindo o de outras espécies de humanos (de tão longe vem o racismo...), culminando no desenvolvimento de um arsenal de armas capaz de destruir tudo e todos, até a si próprio. Isto é, a sua inteligência não difere muito do instinto de destruir, a título de defesa, tudo o que lhe faça sombra, e muito menos lhe serviu para prevenir, a longo prazo, os efeitos nefastos do desequilíbrio das espécies e dos demais elementos. Com a sua capacidade de previsão a médio prazo, o Homem começou a providenciar os alimentos para o amanhã, desencadeando uma espiral de angústias, desde a busca do incerto trabalho remunerado, até ao medo da insuficiência à mesa de todos os dias. Não lhe bastando o instinto de sobrevivência, foi de descoberta em descoberta acumulando vida e alimentando o sonho da imortalidade, ao mesmo tempo que foi incapaz de prever a saturação das urgências dos hospitais, com o esgotamento dos respectivos clínicos, o corropio de INEM's mobilizados por aflições e alarmes mal fundamentados, e a manutenção e prolongamento indefinido da vida sem qualidade. Conhecendo o valor relativo das coisas, foi acumulando riquezas e bens supérfluos, fazendo depender, da sua posse, a felicidade terrena e, para alguns, o prenúncio da felicidade eterna. Alimentado e acicatado por essa inteligência que lhe promete todas as realizações, vive numa constante insatisfação com o presente, fazendo muitos da ambição desmedida o motor de vida.
A tentação de comparar a condição deste Homo sapiens com a dos irracionais é irresistível. Apesar de o planeta se encontrar na meia idade, envelheceu mais, e perigosamente, nos 300 mil anos de reinado da racionalidade do que nos mais de 3 mil milhões de anos de vida irracional que os antecederam. À serenidade e ritmo cósmicos com que os bichos evoluem sobre a Terra, na satisfação das suas necessidades básicas e de entretenimento, opõe o homem a inconstância do humor nascida das mil e uma preocupações com que tem de fazer pela vida. À simplicidade e equilíbrio proporcionados à Natureza pelo tipo de vida animal opõe a inteligência humana a complexidade, a exploração de recursos até ao nível do esgotamento, a poluição e o desequilíbrio dos elementos. As próprias brilhantes e progressivas realizações materiais e espirituais são para o Homem fonte de desassossego, porquanto nenhuma posição intermédia na escala de valores o satisfaz e, uma vez no topo, não tarda que seja dominado pela disforia do tédio.
Na sua Divina Comédia, ter-se-á esquecido Dante de condenar aos tormentos infernais este ser que tão mal, e, por vezes, tão malevolamente usa a sua inteligência? Tanto não julgo. Mais do que carrasco, este último representante da espécie humana é vítima de um presente envenenado – uma inteligência desproporcionada aos restantes componentes da sua natureza. O resultado é o desperdício, o uso enviesado, o frenesim do imediato facilmente alcançável e, no geral, um sofrimento difuso a ensombrar-nos a existência por nunca atingirmos a serenidade de deixar de desejar.
Como em tudo, não há verso sem reverso, há o dentro e o fora, o claro e o escuro , a noite e o dia, as trevas e a luz. A minha descrição quase apocalíptica tem um lado luminoso. Com a mesma inteligência que o tem levado por tantos esconsos e ínvios caminhos, este Homem foi capaz de construir uma história de valores relacionais, éticos e estéticos em constante crescendo de progressão.
Verberamos agora os fundamentalismos de algumas vertentes religiosas, mas esquecemos que, antes, foi esse o estado anímico de todas as sociedades, e que tempos houve em que as consciências eram perscrutadas até ao mais íntimo de si, com instituições religiosas e civis em promíscuo conluio a aplicarem as torturas mais imaginosas e cruéis aos alegados desmandos da ortodoxia. No século passado, o ritmo de vida e os comportamentos da maior parte das populações eram ainda regulados pelos tempos litúrgicos e pelas imposições e interditos canónicos. Poderá parecer deveras romântico, seguro e apaziguador um toque das avé-marias a ditar o fim das brincadeiras ao crepúsculo, ou os rituais e tempos definidos para as relações com o divino e com o profano. Mas só isso, porque não há nada que pague a actual liberdade religiosa, comparada com a degradação e o aviltamento da dignidade humana atingidos nessas sociedades articuladamente teocráticas.
O trabalho, hoje, é escravizante, sim. Mas esta Humanidade há-de ser capaz de humanizar a escravocrata tecnologia que está a dominar o dia a dia do trabalhador, como antes resolveu problemas como o das infindáveis horas de trabalho, das condições desumanas em que o mesmo decorria, do trabalho infantil, da remuneração de miséria.
Nós, os da primeira metade do século XX, sabemos quais eram os cuidados de saúde facultados pelas instituições públicas: nenhuns, por norma, ou, onde as havia, por uma ou outra Misericórdia. Hoje, com muitas carências, ainda, mas é o que sabemos...
Sabemos também como era o poder, nas suas diversas variantes: discricionário, prepotente, elitista, violento, sacralizado. Hoje lamentamos que, aos que o exercem, lhes seja exigido, em demasia, a contenção, a proporcionalidade, o bom senso, a estrita observância da lei, o que, sobretudo em situações extremas, leva à insegurança, à desmotivação, ao desânimo e, no limite, a enfermidades do foro psicológico. È verdade, e há que, politicamente, enfrentar esse problema, que é grave, e resolvê-lo. Entretanto, quantos atropelos e injustiças não foram evitados com o respeito que a sociedade civil foi exigindo para os administrados!
As mesmas relações podemos estabelecer noutros domínios como o do acesso ao ensino, à justiça, à administração pública, o direito à informação e à liberdade de expressão, à liberdade de reunião, o reconhecimento e os direitos das minorias, o antirracismo (e outros ismos), a igualdade de género, o direito à diferença, o respeito pelo ambiente... As sensibilidades geradas, na sociedade em geral, em torno destas temáticas estão a fazer delas, em dignificação e respeito, realidades totalmente distintas do que eram há décadas atrás. Nalguns casos com a denúncia de uma sociedade dominada por preconceitos embrulhados em refinada hipocrisia.
Eu sei: ele há tanta guerra, tanta fome, tanta doença, tanta injustiça, tantas incompetências, tantas assimetrias!..., e há que dizê-lo e repeti-lo até à exaustão e à sua total erradicação. Também sei que há, hoje, uma crise de valores, mas de uns que não serviam para nada, ou até nos aviltavam e envergonham, a favor de outros que dizem bem à excelência e à dignidade que costumamos associar a este conjunto de seres inteligentes e sensíveis a que chamamos Humanidade.
Hei-de escrever um dia em como a filosofia, a estética, a arte e o artesanato constituem, esses sim, os domínios em que a espécie humana verdadeiramente se agiganta relativamente às demais. Porque nisto de prover às exigências do corpo, ficamos muito aquém da bicharada.

O velho e sua mãe
ao Fernando Pessoa
a Rimbault
em desagravo das urgências nos hospitais


Tenho um torcicolo de bronze
a martelar-me as meninges
(tu com esse ar de monge
só finges...)
Levou-me o inem. A sirene
clamava estridentemente
e a populaça na praça
-é velho. Que idade tem?
E quem será sua mãe-
perguntava condolente.
À mesa das assistências
triagens
conspirações
o físico fez reticências:
que não. Não tinha mão,
nem na manga soluções.
Com duas manchas do bronze,
uma de lado a lado,
voltei já morto, e bem.
Nas intermitências da morte
a sorte que a gente tem!

Parede, fevereiro de 2020
Manuel Neto





quarta-feira, 28 de novembro de 2018


Evidências

Os meus amigos, e inimigos, que fujam, como o diabo da cruz, de quem se apresente com evidências, que é como quem diz “ora aqui está a verdade”. A verdade é-o para mim, podendo dar-se a circunstância de o ser também para os outros. Eleger a verdade como algo de absoluto e de aceitação obrigatória pela comunidade, tem feito face da terra um contínuo cemitério.
O paradoxo da questão é que, ao abordá-la, nos socorremos de evidências, isto é, de verdades, como por exemplo  “a verdade mata”, que não dispensamos na elaboração do discurso, por mais céptico que ele seja. Significa isto que nem sempre o relativismo subjacente à pretensa tese que aqui apresento de “a cada um a sua verdade” é estéril: subliminarmente, essas verdades impõem-se ao nosso espírito, para se constituirem em estrutura da nossa existência social.
E tão compulsoriamente e em abundância elas se me apresentam, que nem os ditos lúcidos caminhos epistemológicos de um Kant ou de um Descartes se me afiguram bastantes para ofuscarem o entendimento claro e inequívoco que tenho delas. Ao primeiro, contrariando-lhe o princípio de que da realidade só conhecemos o fenómeno, remetido o númeno para a inacessibilidade do conhecimento humano; ao segundo, reprovando-lhe o método que tão compassada e arduamente desenvolve a partir da tão escassa certeza do “penso, logo existo”, achando ele que não havia outras para ir removendo dúvidas e falsidades que, genesicamente, nos ensombram o pensamento.
Definidas assim as regras do meu jogo, entre a hipérbole, a vaidade e alguma virtude, parto, de consciência tranquila, para as minhas evidências, a que um resquício de humildade, que  guardo bem no imo do meu ser, podia chamar também de “divagações de um espírito casmurro que envelhece  e que da vida já firmou algumas certezas, sem apelo nem agravo de argumentações alheias”. Aos que me queiram acompanhar reconheço o direito de se passearem bamboleando, deixando-me a falar sozinho, ou, tomando conhecimento das minhas propostas, a cobri-las de um sarcástico desdém.

A primeira evidência vai servir-me também de método: “tudo está relacionado com tudo”. Por isso considero aleatória a ordem por que as apresente. Neste momento, guardo as restantes, isto é, todas menos esta, em uma tômbola, de onde as irei retirando uma a uma, ao acaso. Creio firmemente no efeito borboleta. Creio como um fanático nas leis da necessidade. Creio cegamente que 2 e 2 são 4.

E eis a segunda: “ a informação está a envenenar-nos os dias, as horas, os minutos”.
Ilustrar esta evidência custar-me-ia  o espaço que tenho reservado para elas todas. Por isso referirei apenas algumas cenas maradas.
Há canais de televisão e de rádio, muitos, que nos bombardeiam de notícias em cima do acontecimento, quase sempre escabrosas (neste contexto, os anúncios propagandísticos são pura suavidade!), e, não as havendo, repetem-nas estridentemente, como martelo em bigorna; o mais anódino acontecimento, em qualquer canto do país, desde que comporte alguma extravagância, mórbida, de preferência, pode figurar nos ecrans ou cavalgar as ondas sonoras como notícia de “ultima hora”; há instituições públicas que não despegam dos coloridos alertas de perigo iminente, e assim passamos, por exemplo, da seca extrema à inundação catastrófica em fração de segundos, sem um intervalinho que seja para retemperar os humores.
Os casos seriam de somenos, sendo eles  objectos em si, autónomos e independentes, com a sua vida própria, dos quais se possa dizer  “isso é lá com eles”. Mas não, interferem connosco a cada momento, deprimem-nos até ao fosso mais cavernoso, deformam-nos a personalidade e viciam o juízo que fazemos da realidade. Através deles, o mundo é uma extensa arena em que já não é o Bem e o Mal, mas o Mal e o Pior que se degladiam por se apropriarem da étia e da moral. E, no entanto, com um superficial mergulho na História, em tempo roubado à obsessão da notícia, ficaríamos a saber que não têm comparação, em amplitude e nos seus efeitos catastróficos, as Fomes, Pestes e Guerras de outrora com as de hoje, e que como tendência, e globalmente, o respeito da pessoa colectiva pela pessoa individual é uma marca, concreta e definida, que caracteriza as actuais relações humanas a todos os níveis.

Vamos à terceira: “não há nenhum mistério na morte”.
O que é de fácil verificação. Que seria do planeta se não houvesse morte? Um depósito de mortos-vivos, condenados a inventar incessante e exclusivamente espaços e ardis relacionais, sem outro tempo e outras sensações para viver...Isto até ao momento em que o planeta, observado do espaço, se assemelhasse a um monstruoso pacote de esparguete em forma de ouriço, cada vez mais denso, cada vez mais denso. Ah! Resta ainda o espaço aéreo... e o que se pode conquistar à terra, ocando-a. E depois, ainda... Quase nos infantilizamos a imaginar coisas tão absurdas (juntemos aos humanos os outros viventes) , que assim seria a vida se não houvesse morte, um absurdo de casos e de situações, um absurdo de vida. E divagava eu nestes absurdos considerando-os tema para uma boa ficção, e afinal alguém se antecipou com ele , aperceberam-se disso agora as minhas reminiscências literárias, já cada vez mais longínquas e difusas, felizmente sujeitas à lei da morte. O José Saramago escreveu e está tudo dito n’ As Intermitências da Morte, não vale a pena prolongar eu mais esta agonia, que é a ausência da morte.

E “no prazo de 10 anos, vá lá, 20, acabam-se as touradas”. Esta é a quarta.
Diz-que é uma tradição cultural que abarca Portugal inteiro. E por isso é moralmente boa? A cultura asteca centrava os seus rituais em torno do sacrifício humano; em certas regiões da Índia era tradição a viúva dever lançar-se à pira onde o falecido marido era cremado; na Indonésia é cultural a ablação genital feminina; enfim, nãofaltam exemplos de tradições sanguinárias, que todos nós condenamos,  a marcar culturas por essa Humanidade fora.
Diz-que o animal não sente. Não sente?!!! Que significa ”o animal sente”, pressuposto nas leis condenatórias dos maus tratos a animais? E que animais? É feita excepção aos touros? Ou a violência praticada contra estes é virtuosa  por ser ritualizada e pomposamente exibida?...
Diz-que há toda uma vida económica que orbita em torno da res tauromáquica. É verdade. Por isso, a moratória dos 10, 20anos. E passado este tempo, se não antes, havemo-nos de perguntar, incrédulos, como foi possível que animais de compaixão, que nós somos, pudessem ter encontrado justificação emocional e racional para encurralar e torturar num arena outros animais, para mostra de coragem e valentia do lidador e gáudio dos circunstantes...Talvez mais incrédulos ainda do que agora quando lembramos, como um pesadelo, autocarros a abarrotar de gente, e de fumadores em plena execução do acto.

Agora a quinta: “do ponto de vista holístico, progresso é retrocesso na preservação do planeta”.
Tenho procurado, e não encontro, um único ítem de progresso que não se baseie, directa ou indirectamente, na exploração dos recursos naturais. Os grandes saltos do dito progresso, isto é, as grandes revoluções agrícolas e industriais, foram o que se viu, um regabofe. Tem havido agora alguma contenção, e é possível que num futuro, talvez já próximo, o Homem desenvolva vontades e meios para, em muitos domínios, manter os seus níveis de conforto ou até aumentá-los, sem encargos para a Natureza. O que me parece intransponível é que, no fim, restará sempre a necessidade de nos alimentarmos, e que as tarefas desenvolvidas em torno da obtenção de alimentos, manipuladas pela inteligência, não mais voltarão aos tempos paleolítcos da caça e da recolecção.
Na situação actual, sem que o vulgo tenha plena consciência disso, a exaustão do planeta muito deve à produção de alimentos, em muitos casos de efeitos catastróficos. Por outro lado, o entusiasmo suscitado pela agricultura biológica tem uma grande componente romântica: as suas característias não se coadunam com a monocultura extensiva, e o seu êxito depende em grande medida da qualidade dos solos; por isso, é impossível implementá-la em suficiência a nível planeário; acresce, ainda, que este tipo de agricultura carrega os seus níveis de poluição, ao contrário do que muitos julgam. Quero eu dizer que ao natural processo de degradação e envelhecimento do planeta se junta, inapelavelmente, a aceleração provocada pela acção do Homem na sua procura incessante de condições de bem estar, de que, uma vez adquiridas, não mais prescinde.
Há por aí uns futurismos a anunciarem um mundo de outras realidades, que nada terão a ver com as actuais. Duvido, porém, que o Homem, esse complexo de oxigénio, carbono, hidrogénio, azoto, cálcio, fósforo, enxofre..., isto é, um composto em plena osmose com a Natureza, alguma vez consiga reduzir o seu metabolismo, e todas as actividades que o orbitam, a índices inofensivos para o ambiente. A não ser que evolua, e tem de ser rápido, para anjo.
Entretanto, todas as manhãs, ao acordar, dou graças a deus por termos ainda presidentes de junta, presidentes de câmara, ministros e primeiro ministro, que, com os seus pares além-fronteiras, se empenham arduamente em reverter, ou pelo menos travar, as alterações climáticas e, ao mesmo tempo, se desunham por proporcionarem aos seus cada vez melhores condições de vida, com meios e processos, inofensivos, quem sabe?, em misteriosas regiões etéreas do Firmamento...Malhas de contradições que o destino tece!...

A sexta: “O Natal ocorre todos os anos a 25 de Dezembro”.
E ainda bem. Final do ano. Tempo para reflectir. Tempo para ajuizarmos que, desde Copérnico, já não somos o centro do Universo, e, muito menos, que ele tenha sido criado para o Homem. Tempo de, por isso mesmo, nos comprazermos com todos os seres, na medida em que com eles partilhamos, por igual, o gozo e a responsabilidade de existir. Tempo para exorcizarmos angústias, das tantas que, por índole, fabricamos a partir de ninharias, e de outras tantas que nos assaltam do exterior veiculadas por profetas da desgraça e por vendilhões de utopias. Tempo de agarrarmos aquele lado do afecto feito de calor e dádiva, a aquecer quem dá e quem recebe. Tempo de amar perdidamente!



É evidente que tenho mais evidências. Porque umas são excessivamente fracturantes, e as outras alongariam por demais o texto que já longo vai, por aqui me fico.


em Meimão, a 29 dias do Natalde 2018
Manuel Neto

terça-feira, 9 de outubro de 2018


Para além da eutanásia

Lembras-te? Morria-se em casa, no aconchego do lar, com os seus ao lado. Tal como se vivia: duas, três gerações debaixo do mesmo tecto, ou vizinhas.
Morria-se cheio de saúde, por uma qualquer moléstia que matava em poucos dias. Até lá, era a vida plena, cheia de carências, sim, mas não necessariamente de sofrimento.
As crianças assistiam e ajudavam nas exéquias. “É a vida”, dizia-se; sim, a vida, que envolve necessariamente a morte; a morte, um transitório momento da vida.
Velava-se o corpo na divisão maior, porque eram sempre muitos os convivas a quererem partilhar este momento da vida, a vida morte. Qualquer outro local soava a desprezo, alienação, profanação. Era, depois, simplesmente devolvido à terra, para que ela, alimentando-se, pudesse iniciar um novo ciclo. A campa rasa, para que mais depressa o corpo e a memória se diluissem no ser universal que partilhamos.

Sempre insatisfeitos, ocorreu aos humanos que poderiam prolongar, por mais algum tempo, essa vida vida, depois de a considerarem escassa para usufruirem de tantos e apetecíveis bens terrenos. Havia os arautos da verdade revelada, que, há séculos, nos anunciavam a morte como pórtico triunfal que dá acesso ao jardim das inefáveis delícias celestiais. Havia o discurso dos filósofos, que faziam da vida o bem supremo, enquanto digna. Porém, nem, por ironia, os primeiros, que prometiam o prazer dos sentidos para toda a eternidade, nem a dignidade evocada pelos segundos, marca que deveria ser distintiva da nossa raça de criaturas, foram motivo bastante para deixarem que a Natureza desse livre curso à suas leis.

Prolongar a vida passou a ser a palavra de ordem em todas as instâncias: a ciência, que, na demanda insaciável de causas e efeitos, ameaça invadir o próprio domínio das últimas causas, reino da filosofia; os governos, que por todos os meios se esmeram no afã de criarem as condições para a felicidade imediata dos seus súbditos; os industriais, que, sempre atentos às intermitências dos mercados, não descuram as oportunidades do lucro; o indivíduo, que, simultaneamente agente e paciente neste palco de relações, presunçosamente se tem como princípio e fim da ordem do Universo... E, como pano de fundo, talvez o sonho da imortalidade, que, desde a tentativa falhada do pecado original, nunca mais deixou de interferir no nosso subconsciente coletivo.

Foram admiráveis os resultados de tanta porfia, expressos num extraordinário aumento de esperança de vida, sim, de qualidade. Mas, simultaneamente, extraordinário foi também o aumento do tempo agónico, aquele em que as faculdades e capacidades irreversivelmente se degradam, ao ponto da total dependência de um cuidador. Esse tempo, antes escasso, é agora prolongado ao ritmo das máquinas, das técnicas, dos fármacos, que entre si competem na composição dos elementos que mantêm, ad nauseam, esse sopro vital, tornado valor absoluto até ao último suspiro. Apesar do sofrimento atroz que se adivinha na imobilidade do corpo e no alheamento do espírito. Apesar dos dias... dos meses... dos anos de olhar perdido e vazio de sentido e de esperança.
Hipocritamente, a sociedade, ou seja o Estado, adoptou algumas estratégias para lidar com o problema. Por norma, espera que o familiar mais próximo preste os cuidados necessários, atribuindo, mesmo, incentivos por isso, ou até a colaboração dos serviços de saúde. As famílias sabem, porém, que esta primeira instância é, hoje, condicionada por incompatibilidades com obrigações profissionais no mercado de trabalho, e que, havendo disponibilidade, na maior parte dos casos rapidamente sobrevém o esgotamento do cuidador, tal a dependência extrema a que chegam muitos idosos. Segue-se o internamento num lar, com redobrada hipocrisia agora designado “ ERPI” (Estrutura Residencial para Idosos): momento este doloroso e angustiante para os familiares, que não mais se libertarão do sentimento de culpa por “abandono” de um ente querido, e para o idoso, que se vê depositado na antecâmara da morte.

Poucos de nós haverá que não conheçam o dramatismo desta realidade e o que ela contém de obsceno. Mas se não for esse o caso, vá o leitor a uma dessas estruturas (representante da maioria que cobre o País, não daquelas poucas que têm por detrás grandes investimentos financeiros e só acessíveis a uma restrita elite...) e diga se não é a morte que espreita a cada porta e se senta no vazio que rodeia os que ali debilmente se prendem à vida. Felizes aqueles que, em tal cenário, já não dispõem das faculdades cognitivas... e simplesmente vegetam, porque para os que ainda têm  olhos para ver, ouvidos para ouvir...e juízo para ajuizar, mais lhes valera a morte que tal sorte!

Não me lembro de filósofo ou cientista que se tenha questionado sobre uma lacuna que me parece congénita ao nível da inteligência humana: a incapacidade de planear a longo prazo, ou seja, colocando o problema ao nível da espécie, a milénios. Mais que qualquer outro animal superior, o Homem juntou ao instinto novos estratagemas de sobrevivência e de mobilidade, disseminou-se pelo planeta, depradou indiscriminadamente, poluiu, proliferou em número só superado por alguns animais que, para seu próprio proveito, domesticou. Suspendeu-se alguma vez o Homem em reflexão sobre as consequências dos seus actos, que assim o levaram ao domínio soberano sobre a Terra? Não. A lógica dos seus compromissos foi sempre a do carpe diem, tão deliciosamente vivido por todas as personagens desta comédia humana: desde o clã familiar que procura o domínio em número, posse e território que lhe assegurem o bem estar dos seus membros, ao cientista que exulta com a resolução do problema que aflige o nosso dia a dia, ao político que persegue a cada minuto o crescimento da economia, e, até, ao poeta modernista que, para êxtase dos contemporâneos, cria a “Ode Triunfal” (Ricardo Reis) em louvor das rodas e engrenagens saídas da Revolução Industrial! r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-!

Verdade seja que apareceu um Thomas  Malthus (segunda metade do sec. XVIII) a reflectir sobre o impacto que tem o crescimento da população mundial, que se processa em progressão geométrica, na qualidade da nossa existência. Mas fê-lo já sobre o acontecimento, e apenas conjugando o tema com a progressão aritmética na produção de alimentos, que assim se tornarão insuficientes. De fora, ficaram factores, hoje decisivos, e altamente condicionados pela acção dessa espécie dita inteligente que profusamente se instalou por toda a superfície planetária, como o equilíbrio ambiental, a biodiversidade, o aquecimento global... E a culminar tal ramalhete de efeitos, nunca previstos em tempo e muito menos planeados, esta obsessiva perseguição da imortalidade, que a todos nos põe às voltas com a eutanásia.


Parede, dia de S.ta Pelágia,virgem e mártir
Manuel Antunes Neto

sábado, 24 de março de 2018




DISCURSO PROFERIDO NO 18.º ENCONTRO (20.º ALMOÇO) DOS OFICIAIS DO QPv.DO BATALHÃO N.º 2 DA FISCAL, EM ÉVORA-CASA DO POVO DE CANAVIAIS

A 17MAR2018


   Aprendi a escrever era ainda miúdo, aí por volta dos meus sete anos de idade. As primeiras letras que procurei desenhar com um lápis no caderno ou, com o ponteiro na lousa, foi trabalho árduo, tarefa pesada para criança tão pequena, um esforço tremendo com a mão emperrada que a custo se movia e, se movia, era graças à ajuda de minha mãe que com a sua mão apoiada na minha, a fazia deslizar consoante a letra a moldar.   Quando já convencido de ser capaz e me punha no papel a rabiscar o 0 que é tão fácil de fazer, mais me parecia um girino a brincar no charco com lodo de água estagnada e, o i que até criança de menor idade, hoje, o faz na perfeição, mais se assemelhava a um pirilau empinado, com pinta e sem cabeça. Desse tempo da escrita torta e enviesada, lembro bem como admirado, pasmado ficava com as letras da professora que estampava no quadro negro a servir de modelo, traçadas a preceito, tão redondinhas e tão explícitas, tão certinhas e tão perfeitas! Mais recente, quando os médicos possuíam a liberdade de prescrever a medicação em receita por si gatafunhada vendo-a aflorava-me à mente, tantos anos depois, o traço rigoroso daquelas letras traçadas no quadro da sala de aula comparando-as com os hieróglifos traçados no papel da receita e cismava como era possível o pessoal da farmácia descodificar a mensagem cifrada, sem que trocassem alhos por bugalhos, se é que alguma vez tal não tivesse acontecido. Com certeza, foi por isso, que alguém tendo-o percebido, impôs receituário a letra de computador! Na minha meninice já se dizia que "Deus escrevia direito por linhas tortas"! Eu, não. Escrevia torto por linhas direitas. Usando cadernos com as duas linhas paralelas à distância de 3 milímetros que se intervalam quase de centímetro a centímetro ao longo de toda a folha, via-me atarantado para ali meter as minúsculas sem que uma ou outra letra extravasasse os limites impostos. Bem vistas as coisas, mais de metade das 23 letras do nosso alfabeto são esguias e altaneiras com permissão forçada de ultrapassar tão limitado espaço que é, afinal, só reservado à minoria. Claro que nessa altura, ainda se não escrevia o k, o w e o y, letras que não sendo merecedoras de se incluírem no abecedário oficial, eram utilizadas, todavia, às escondidas, de uso disfarçado como quem teme por vergonha expô-las a público. O K para símbolo do quilograma com o g; o W para o nome de um colega meu chamado Walter, assim mesmo registado e o Y a que lhe chamavam também i grego, para Yvone uma moça de seios grandes, nascida no Brasil, filha de pais Portugueses que emigraram e, que, de vez em quando vinham de férias para a aldeia e a quem lhe chamavam "os brasileiros" que logo se reconheciam pelo pai dela andar sempre vestido de branco, fosse inverno ou Verão. Enfim... à custa de muitas cópias e ditados, de zangas e palmatoadas, senti que já era capaz de ler e de escrever. No liceu já, quando um dia a professora de Português, ao começar a aula mandou, de surpresa fazer uma redação sob tema que enunciou: - "Faça o seu auto retrato” -. Pensei e logo concluí que ter de abordar ser alto ou baixo, gordo ou magro, bonito ou feio, jeitosinho ou mal-azado, era matéria que a elas compete julgar e não a mim a ter de o dizer. Assim, resolvi contornar o tema, optando por divagar, fantasiando ao sabor dos sonhos meus como era tanto do meu agrado. Quando se entregaram os trabalhos, a "sotôra” chamou-me ao estrado, impôs que me voltasse de frente para a turma e, em voz alta, ato contínuo, pôs-se a ler a minha redação que no final me disse não concordar pela distorção que ao título cometi mas... bem sei que ela gostou. Ao sairmos da aula, alguns dos meus colegas, incrédulos ainda, perguntavam-me desconfiados se fôra eu a escrever aquilo. Que satisfação a minha e que vaidoso fiquei! Inchado de tanto orgulho foi sentir-me bonito o bastante para meu auto retrato. Depois, no 6.º. Ano, a matrícula só poderia ser por opção, Letras ou Ciências e eu claro, face às circunstâncias, escolhi, como não poderia deixar de... Ciências! Letras? Só na sopa e na canja de preferência! Mais tarde, quando já no Porto frequentava a faculdade de Ciências, passava mais tempo no Café Diu que na residência onde habitava. Não havia dia que passasse sem ir ao Café. Então, sentado numa mesa, ou com colegas, estudávamos ou fazíamos por isso. Eu escrevia, escrevia muito e muito gostava de escrever. Escrevia longas cartas de amor, cartas de amor inspiradas mas, de amor falseado já que o não possuía em quantidade para o dar a tantas que escrevia, deixadas ao acaso e em suspenso pelos vários sítios por onde andara. A meio da escrita entrava no Café outro frequentador assíduo, advogado, professor, estudioso do folclore português, poeta conhecido já, com versos que a Amália haveria de cantar, um senhor de ar composto, distinto no trajar, com fato e gravata sempre, era o Pedro Homem de Melo. Diziam que era gay e que tinha um filho chamado Salvador. Nunca o confirmei e que importava isso se só conversas, o convívio e a tertúlia interessava!? Cá por mim nunca fui alvo do seu assédio, nem nunca me apercebi que assediasse fosse quem fosse. Tinha uma tara, isso tinha. Engraxava os sapatos tantas quantas as vezes que entrasse no Diu. O rapaz que por ali andava com o caixote de mesa em mesa à procura de quem quisesse engraxar, logo que o via entrar ia a correr ao seu encontro e mais outra engraxadela ainda que o tivesse feito 5 minutos antes. Eram assim os meus dias felizes passados na cidade, repartidos entre o Café e a residência, entre os cinemas e a faculdade. Mas dia, quando escrevia, desta vez num exame a decorrer, fui subitamente interrompido por um funcionário da Universidade comunicando-me que terminasse rápido o exame, findo o qual deveria telefonar ao oficial de dia do RI 13, em Vila Real, para me inteirar dos pormenores, dado que, estando mobilizado para Angola, deveria estar no dia seguinte na Escola Prática, em Mafra... Mundo que eu pensava ser meu ruiu ali em segundos, em frangalhos como destroços que ficam passada a tempestade! Que tão pouco somos nesta vida vivida com o desenho feito a gosto, que um pequenino traço, nele traçado por mão alheia, num ápice, lhe muda logo e tão profundamente a feição. Sinto-me como objeto inerte que, sem serventia já, é lançado ao lixo por tão incómodo e já inútil. Sou, garantidamente, a acha atirada por mão invisível à secura do matagal atiçando um fogo que, alastrando, irá queimar, destruir, horrorizar, matar. Em 1961, cheguei a Luanda, integrado na Companhia de Caçadores 135, do Batalhão 132. Em desfile ao longo da avenida marginal, somos recebidos com palmas por um montão de gente branca, que a enche e que em nós só vê a salvação como côbro da barbárie que grassou e continua nas roças e fazendas do norte daquela, então província, segundo relatos pungentes de fazendeiros fugidos chegados à capital. Com alguns dias em instalações improvisadas em Luanda, todos os oficiais do Batalhão são chamados ao quartel general onde pessoal atarefado parece afadigar-se com as informações e operações em curso. Reunidos, ali nos foi dito, taxativamente: vós que ides partir para o norte, escrevam, escrevam e informem-nos do que se passa por ser tão pouco o que sabemos de tão escassas as informações que nos chegam. Parti e escrevi. Escrevi a dor que não queria com o amargor do que nunca pensei ser capaz. Escrevia, dia a dia, num caderninho de linhas simples, sem a ajuda de minha mãe mas, com o pensamento nela, adivinhando o quanto sofreria e sofria muito como muitas mães que, então, sofriam Registei no papel os lamentos daqueles que ali sofriam também, os gritos desesperados que ouvi, as súplicas de quem padeceu e padecia ainda. Serviçais negros, acordaram um dia de catanas afiadas, martirizaram os patrões, violaram as mulheres, dizimaram os filhos. Os corpos mutilados, profanados espalhavam-se pelo terreiro, deixados propositadamente para causar terror. Terroristas que ainda ontem haviam brincado, sorrindo àquelas crianças. Terroristas que ainda ontem embalaram aqueles bebés ou, ao colo os adormeceram. Terroristas sim, mil vezes terroristas, terroristas que depois munidos com as catanas e canhangulos nos esperavam escondidas ao lado dos trilhos por onde apeados seguíamos ou, camuflados nos caminhos de terra batida nos aguardavam, cavando no chão valas tapadas de arbustos e ramos que engoliam os jeeps morrendo os que neles seguiam e, assim se apoderarem das suas amas, cunhetes e munições. Com elas, depois, montavam emboscadas, atacavam de dia ou de noite em locais para nós tão estranhos e para eles bem conhecidos. Sobre isso tudo, ia escrevendo, escrevendo tudo mas, nunca consegui encontrar que traduzissem com rigor aquele pressentimento da morte possível ao atravessar a mata densa; o suplício sufocante que nos acompanha ao longo da picada protegida de capim alto de um lado e do outro; a aflição que fere na expetativa da suposta emboscada e da sorte que se espera nos tiros que se ouvem dirigidos a nós, provindos do nada; aquele calafrio que queima quando seguimos envoltos no silêncio da noite por caminho ignorado, sem fim e sem destino e o silvar do vento nas copas do arvoredo mais parece ronco de Adamastor. Salvo de uma guerra que não esqueço, ingresso na Guarda Fiscal de quem serei servo até que morra de ignomínia, esquecida, desprezada e, por culpa de muitos que, julgando servi-la a espezinharam sem saber. Como serviçal que sou, obediente, cumpridor e atento, dela vou cuidar com desvelo devotado, redobrando os cuidados quando, já enferma, deles mais vai precisar. Nela fui quase tudo e não fui nada. Nela muito escrevi, escrevi muito e de nada valeu a pena. Relatórios, informações, notas e ofícios, pareceres, despachos, propostas, de procedimento, juízos de valor e de nada valeu a pena. Benquisto e desprezado, fui louvado e punido, fui professor e aluno, elevado aos píncaros da fama, vertido nas ruas da amargura, subalterno e comandante, fui julgado e absolvido, inocente e culpado. Fui quase tudo. ... e não fui nada!

Exmas Senhoras
Exmos Coronéis
Exmos Ten Coronéis
Senhores Capitães,
Tenentes e Alferes
Amigos e Camaradas
O meu último escrito oficial data dos princípios de 1993, quando redigi uma crónica destinada à Resenha Histórica do Anuário para 1992 do Bat .1, a qual foi proscrita pelo coronel comandante de Batalhão ou, quiçá, concordante com um brigadeiro, comandante da Guarda Fiscal pelo medo que tal escrito pudesse abalar potencial lugar de conforto reservado ao coronel ou, à eventual alienação do poiso já criado para o brigadeiro, no que resultasse da reorganização que já se adivinhava. Tal crónica nunca foi publicada nem lida, apenas, por mim guardada como relíquia. Dividida em 3 capítulos, só os 2 primeiros continham o motivo da proibição, já que o terceiro só alude ao publicado em Diários da República. É aquela parte, pois, que vos vou ler, submetendo- à vossa censura. Se acaso, entenderem, que o texto é mal educado, ofende a moral, incita à revolta, viola a lei ou, ataca a hierarquia, peço-os o favor, então, de o não escutar!

A EXTINÇÃO DA GUARDA FISCAL
1. Introdução
O ano de 1992 ficará decerto na Hist6ria e, mau grado nosso, corno o da "Morte Anunciada" da Guarda Fiscal. A Corporação vetusta, já não possuía força anímica indispensável para vencer os escolhos que nascem, se criam ou moldam com o decorrer do tempo. Tal como a máquina sem manutenção acaba por ceder, também a GF vai sucumbir, naturalmente, por falta de sopros vitais que não teve quando se impunham (e deles necessitava) ou, vá Iá, se porventura fracos, foram com certeza sem perícia ou, sobremaneira inadequados. As Forças Armadas e por arrastamento as Forças de Segurança estão subordinadas ao Poder Político. Entendeu o Governo por razões que lhe assiste, extinguir a Guarda Fiscal e integrá-la na GNR na sequência da reestruturação das Forças de Segurança preconizada desde há algum tempo já. Não nos compete, nem nos cumpre discutir intenção governamental, mas nada nos impede de manifestar a surpresa de tal decisão e interrogarmo-nos do seu porquê. Ignoramos os motivos que levaram ao intento e, por isso, baseamo-nos nas declarações pÚb1icas, quer do Ministro da Administração Interna, quer do 1.º Ministro sobre tal matéria, para fazer uma ligeira análise do facto. 0 1.º Ministro afirmou que seria irracional manter a GF e o Ministro do MAI que, com a integração de Portugal na Comunidade Europeia atenuaram-se as tarefas até então atribuídas à GF e, ainda, estar afeta à Direção Geral das Alfândegas e à Direção Geral de Contribuições e Impostos, o controlo do IVA. Com efeito, não podemos acreditar que estes motivos sejam a razão fundamental da já citada decisão do Governo. Ressaltam imprecisões para as quais não encontramos uma razão plausível. Primeiro, por considerarmos incompatível a missão da GF com a da GNR. A GF é, essencialmente, uma Polícia Fiscal com o contorno nítido de preservar e fortalecer a Fazenda Nacional e a GNR uma Força de manutenção da ordem pÚb1ica, tal como a PSP. Tanto que assim é, levou a que o Ministro do MAI determinasse, no âmbito da reestruturação manter a GNR em determinados locais em detrimento da PSP e vice-versa, o que demonstra claramente que aquelas duas Forças se substituem, das quais fica arredada a CF. Segundo, por não se entender que sendo essencial a afetação do IVA à DGA e DGCI estas o possam efetuar no terreno sem que as acompanhe uma Força de Segurança que, por razões óbvias ser a GF a escolhida. Por outro lado a GF é ainda solicitada por outras Instituições para uma colaboração que tem sido profícua com resultados significativos e altamente reconhecidos e a sua extinção não dispensará igual apoio por outra qualquer Força. Vamos então admitir a existência de uma estrutura disforme, pesada da Corporação não consentânea face ao novo figurino Europeu. Eis-nos pois, chegados ao cerne da questão. De facto, as regras comunitárias configuram o arquétipo mais aligeirado, firme e profissional da GF. Todos o reconhecemos necessário, como necessária e imperiosa se conjeturava uma reestruturação cabal. Uma reestruturação que definisse novas regras, estabelecesse tarefas refundidas dos apoios prestados, cumprisse a missão traçada para prestígio e bem da Nação. Extinção não. Não porque não se justifica. Não, pelo muito e, principalmente, pelo respeito devido a muitos que contribuíram para a dignificação da pátria e, até do Governo. Mas... assim o entendeu o Governo. Resta-nos, pois, em jeito de súplica, orar o hino da Morte Anunciada!
2. Hino da Morte Anunciada
Ao longo dos seus 107 anos de existência, a GF na salvaguarda dos interesses Nacionais, majestosa e aprumadamente serviu a Monarquia e... com idêntica postura, ardor e afinco o faz na República. Outrossim, isenta de sectarismos, labuta para a missão que sempre cumpre na Ditadura e... com a mesma firmeza e humildade, repete-se na Democracia. E a tudo resistiu...
Ao longo dos seus 107 anos de existência, a GF albergou no seio Homens de arrebitada têmpera que a serviram com honra e dignidade, paladinos do lema gravado no carácter de "vale mais quebrar que torcer" homens de índole exacerbada que dela se serviram com mesquinhez e subserviência, arrogantes e fúteis, energúmenos devotados às fáceis seduções. E a tudo resistiu...
Ao longo dos seus 107 anos de existência, a GF foi sujeita a mú1tiplos dispositivos, a diversas implantações e a serviços variados e... no entanto, ao calor e ao frio, com ou sem aconchego, com muitos ou com poucos, bem ou mal instalada, nunca deixou de trilhar com afã, o percurso que lhe estava traçado e jamais deixou de ser quem era. a tudo resistiu...
Ao longo dos seus 107 anos de existência, a GF calcorreou montes e vales, encharcou-se à chuva, secou-se ao vento, banhou-se em praias, estorricando-se ao sol. Perseguiu presas em terras de ninguém, gelou-se, postada em silêncio, nas caladas da noite espiando vilões até ao romper da madrugada. Molestou salteadores de arcas empacotadas e, apalpou até, o reino cruel, sinistro e pungente das ilusões viciadas. Mas houve também, os rastejantes da sombra, trapaceiros do luar, ímpios de pacotilha tresmalhados em logros de miragem, molhados na lama e secos de moral, banhados de perfídia e torrados na vergonha. São os vendilhões do Templo, Judas atraiçoando o Senhor. E a tudo resistiu...
Ao longo dos seus 107 anos de existência, a GF estrela vigilante de infrações a cometer e lenitivo de peste fraudulenta que grassa e corrói o País, arrecadou bens para o bem do erário público e repôs o lícito em labirintos de astúcia. Exaltada por feitos conseguidos, encimou colunas de jornais e, adejando no éter, constou na TV. De mãos dadas, afoita e fraternal, colaborou com Instituições Nacionais em multifacetados ilícitos e, transpondo a raia, igualmente o fez com congéneres estrangeiras. E... no entanto, por inveja ou malquerença, ódio ou presunção de incautos, desprevenidos e ignorantes foi, simultaneamente, criticada, amesquinhada, vilipendiada, abandonada.
E a tudo resistiu...
Com efeito...
Ao longo dos seus 107 anos de existência a GF a tudo ia resistindo, por embalada nas ledas fantasias reais, disfarças em folhetins de labor
... Ao longo dos seus 107 anos de existência, a GF a tudo ia resistindo, por amalgamada de humildades descabidas e balofas presunções, ter refletido imagens de servidão não servindo de nada.
... Ao longo dos seus 107 anos de existência, a GF a tudo ia resistindo, por trespassada de gente que passa, repassa e torna a passar em simbiose de quimera, ideias refreadas, ódios à mistura e soluções apresentadas sem qualquer representação.
... Ao longo dos seus 107 anos de existência, a GF a tudo ia resistindo, por adormecida na doce acalmia da brisa suave pressagiada em vento de mudança.
... Ao longo dos seus 107 anos de existência, a GF a tudo ia resistindo, por não bastar, tão só o uniforme azul cinzento aos brados ressonantes no azul celeste: PELA PÁTRIA E PELA LEI.
E... não resistiu...
Acabei de ler o que estava escrito e reprovado que foi por quem nada percebia de Guarda Fiscal. O que deveria ter escrito, isso sim, era a denúncia da mesquinha inveja sentida por esse execrando ministro de nome Manuel Joaquim Dias Loureiro ao aperceber-se do risco latente que o ameaçava pelo afeto que o patrão Cavaco Silva lhe votava e que, agora, implacável se desviava para o colega de governo Fernando Nogueira, muito bem conceituado pelo êxito estrondoso que obteve na limpeza dos coronéis. Nos seus malfadados pensamentos, Dias Loureiro deveria ter meditado que para se reabilitar, reconquistando a estima de seu amo, seria fazer o mesmo, isto é, a reestruturação nas Forças de Segurança, as quais sob seu mando, seria fácil de cometer. No princípio hesitou muito se, acabar com a PSP ou a GNR mas, depressa se convenceu do rumo a seguir, já que, para quem como ele, tão manhoso e servil, a bajulice é trunfo a considerar. A PSP daquele tempo sei, era exímia em esconder a sua inépcia, transformando a incompetência em pompa para inglês ver. Entrosada nos corredores do poder que bem sabia seduzir com manobras de diversão, simples lhe seria conquistar a simpatia de quem manda. Não seria, pois, Força a abater. A GNR, refeita do amargor e má reputação, trazidos pelo acolhimento de Marcelo Caetano e recomposta das bordoadas na frontaria do seu quartel principal como castigo da desobediência a Salgueiro Maia, torna-se cada vez mais precisa. dada a sua implantação no terreno, para suprir mazelas e impor ordem neste país desaustinado. Depois e, como importante, é ter sentinelas na Presidência, guardar costas a entidades e fazer segurança a moradias de ministros mesmo que tenham cães. Além disso tem charanga a cavalo, ainda outros cavalos esbeltos, cavalos em quartéis recolhidos onde fazem estrume. Estrume para terras de quem o pede. Também eu o recebo que, pessoal indicado me traz em carrinhas quase cheias e que, ele próprio descarrega, sem gasto meu de um cêntimo sequer. Era, então, convicção minha que não seria Força que acabaria e, ainda bem que não acabe. por causa do estrume! Só nesta altura, o ministro já convencido do que quer, se lembra da Guarda Fiscal que, sacudida das Finanças, por ele é recebida de mão beijada, e mal conhece e nunca ou pouco dela ouviu falar. Sem proteção e ninguém que a defenda, tem a agravante de não ter passado de esplendor aos olhos de quem decide e bem por culpa de quem a comandou. Comandantes Gerais que optaram sempre por mera Guarda tranquila, apagada e amorfa, porque aprendendo, tão só, artes de guerra, temiam uma dinâmica e vivacidade maiores implicando mais obediência à doutrina específica, eles que a ignoravam, nunca saberiam gerir. Eis, pois, a Força a abater. Todavia, como desistir é próprio dos fracos e a esperança é a última a morrer, haverá que lutar, tanto mais que nestas questões de política, o conhecimento, o favor e compadrio são fatores a considerar que, com toda a facilidade, são capazes de virar o bico ao prego. É chegada a altura de eu e o Vitória criamos a primeira PPP. Parceria, porque nós ambos; Público, porque queríamos que o intento chegasse a público e, Privado, porque não importava saber quem os autores. Sem demora, arrancámos em direção ao jornal "0 Independente", sendo recebidos, cortesmente, pela sua Diretora Helena Sanches Osório que sabedora ao que íamos logo anuiu e nos encaminhou a um jornalista que se encarregaria do artigo onde se vincasse o descontentamento e revolta dos oficiais pela insemina— gão a praticar. Só um senão da Diretora, artigo só seria publicado satisfeita a ressalva deontológica própria do seu jornal em ter de obter o contraditório, ouvindo o brigadeiro. Publicado em 3 de Março de 1993, em 4 colunas, é assinado por Pedro Guerra que assim o titulava: “ BRINCAR COM A GUARDA - Mais de cem oficiais da Guarda Fiscal reuniram-se na passada semana em Cascais. Contestam cada vez mais a sua integração na GNR e o facto de o seu comandante-geral não “zelar" pelos interesses da Corporação. A coisa está feia". Entendíamos não chegar que uma notícia de jornal surtisse o efeito por nós desejado e valendo-se dos conhecimentos partidários, em especial do Gamboa Marques e do seu PS do coração, falou-se ao deputado Jorge Lacão para zurzir no Parlamento quanto ao descalabro da extinção da Guarda centenária que ele bem compreendeu, aprovou e assim o fez e só quem não quis ou pôde o não ouviu em telejornais da TV. Mas... isto de atrair gente influente para causa própria, era experiência vinda do antecedente cujo ensaio havíamos tido no pós 25 de Abril. Saneado o Gen. Mário Silva, Comandante-Geral e passando à reforma o então 2.º Cmdt Geral, Coronel Patrício Calado, ficou a comandar interinamente a GF o Cor. Custódio Nunes, homem experiente e dela conhecedor que há muito a servia. Receando nós que nos colocassem qualquer oficial general inconveniente ou de gancho para comandante, víamos naquele coronel a pessoa indicada para o cargo, desde que fosse promovido como condição necessária para tal. Ora, entram em campo o Gamboa e o Vitória, ativistas sempre atentos que me empurram para ir falar ao General Loureiro dos Santos, então Vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas como pessoa capaz de poder acelerar a promoção do coronel Mas porquê eu, pião das nicas, e não eles? Apenas pela pura casualidade do Gen Loureiro dos Santos ser filho do cabo da GNR que comandou o posto de Vila Pouca de Aguiar, o concelho da residência de meus pais e que meu pai bem conhecia pelos contactos que com ele tivera por via dos negócios que exercia e manter boas relações com a autoridade local é ato de bom senso e cortesia. Poderia ser, quem sabe? que o rapazito que por ali andou, agora general, movido pelo conhecimento da estima entre os nossos familiares o comovesse a tudo largar de imediato e, e por instinto, logo providenciasse à promoção! Lá fui e embora na altura, a cotação de capitão fosse superior à de general, ele ouviu-me atencioso e prometendo conceder o óbolo que o pedinte sempre espera. O Coronel cansado de esperar pela promoção nunca chegada, pediu passagem à reserva e foi-se embora. Porém, a situação de que a Fiscal agora enferma, afigura-se séria e bem mais grave a requerer tratamentos específico, medicação apropriada cuidados paliativos que reputamos insuficientes quer pela notícia de um jornal, quer pela oração expedita de deputado diligente. Queremos ainda mais, ir mais longe, mais alto e mais além. Dada a circunstância de ter na altura, uma estimada prima casada com o Vitor Ramalho conselheiro e amigo pessoal de Mário Soares, ser seu assessor e assistente na Presidência, era parentesco ideal que tudo poderia alterar. E logo o utilizo com o apoio e incentivo, uma vez mais, do Gamboa e do Vitória que me pressionam e me apressam para a diligência que apraz. Telefono-lhe e peço-lhe que motive o Presidente a não promulgar o Decreto prestes a Iá chegar, pela incongruência que se há-de verificar, acarretada pele extinção de uma Guarda a ser noutra integrada. Não é com surpresa que dias volvidos recebo o telefonema de volta em que me informa não estar o Presidente em condições para desagradar, levantando conflitos com o 1.º Ministro Cavaco Silva, pelo que, ainda que contrafeito, iria promulgar o diploma. 0 26 de Junho de 1993, é sábado Logo num sábado quando se goza o lazer de um fim de semana tão esperado... Logo num sábado quando mais se está arredado das preocupações provoca das pelo dia a dia do trabalho rotineiro... Logo num sábado quando o pensamento se liberta, a distração é maior e maior o relaxamento... .Logo num sábado quando a bonomia mais ressalta nas pessoas por mais desprevenidas e descansadas... Logo num sábado é que se aproveita, corno a medo e à traição, para se publicar no Diário de República, o Decreto-Lei 230/93 que extingue a Guarda Fiscal. Acabou-se. Já de nada vale escrever e, se o fizer doravante, só para criticar, maldizer, denegrir, contrapor e por mais que procure não encontro verbo de tema em “ur”. Se existisse, aqui o estamparia também para que, não só com as vogais todas mas também, com todas as letras pudesse traduzir o desprezo e raiva que senti. Sou, deveras, um perdedor... perdedor em toda a linha. Perdi em tudo... tudo em que me meti. Ignorado por general que a pedido feito, não logrei; desprezado por brigadeiro que em nada acreditou e a tudo se opôs, magoado com o parlamento que nem votou, nem maioria conseguiu a aprovar proposta de parlamentar; revoltado por um artigo de jornal não conseguir convencer um povo à greve, tão pouco a qualquer manifestação; chocado com um primo afim, por incapaz de conseguir o veto presidencial; desolado com o presidente por promulgar o que não devia. Sou, deveras um perdedor em toda a linha. Perdi em tudo. Em udo em que me meti. Ignorado, desprezado, magoado, revoltado, chocado e desolado, só me resta o desterro como castigo do que perdi. Foi aqui, neste Alentejo, neste Alentejo meu de outrora, onde se não apagaram as lembranças do que vivi. Neste Alentejo encontrei refúgio e onde me escondi, abandonando tudo aquilo e os outros... Sim os outros todos que Iá ficaram. Ossadas da Guarda Fiscal... serão em breve triturados e transformados em farinha, farinha misturada, farinha do mesmo saco. Aqui estou, convertido em agricultor a brincar, agricultor brincando mal distinguindo o ancinho de um arado que, com o estrume que dão, estrume de cavalo, o lanço à terra na terra que trabalho à jorna e diversão onde manhã ao sol pôr. Lanço as sementes à terra e, até parece milagre, nascem coentros, salsa, os nabos e as nabiças. E que feliz aparento ser! Às vezes... e, sou muitas vezes enganado, o grelo parece arrebitar e por mais que eu me esforce, já não arrebita mais. Porém, o meu maior azar é com a cenoura... bem a rego e bem tento e, por mais que amacie a terra, nasce sempre torta, recurvada e não a consigo endireitar. Ponho-me a cismar cá comigo por tão má sorte e, sem encontrar explicação, interrogo-me se a culpa será da terra ou de mim já sem jeito. Na altura própria, planto a cebola, os alhos, o pimentão e os tomateiros e, chegado o verão, que delícia... exponho os tomates ao sol... e que feliz aparento ser: Depressa avermelham, já que o tomate quer sol pela cabeça e água pela raiz e, todo o cuidado é pouco, e preciso cobri-los que este sol abrasador, descarado e sem vergonha, os queima, queima mesmo. E que regalo colher da árvore, a laranja cheiinha de vitamina, a melhor vacina precavendo da gripe que os frios de inverno sempre causam ou, colher o cacho de uvas douradas, tirado à videira tão viçosa em pleno verão. E que feliz aparento ser! Depois, hei-de colher outra fruta de árvores que já plantei, magnórios da nespereira, alperces do damasqueiro, as peras da pereira e maçãs da macieira. Só não colho peros que, pereiro não existe e ninguém conhece para que se não diga que peros não são maçãs ou, que peros são peros e maçãs são maçãs ou, as maçãs não são peros, já que os peros são maçãs. E as discussões mantinham-se acesas e acaloradas sobre a origem do pero, na messe de Alcântara à hora do almoço quando, um simples copo de leite era almoço empanzinado do Vitória. Almoços, pois claro! Não é só trabalho de campo. Todas as semanas em nossa casa, eu e minha mulher, temos refeição requintada com os filhos , netos e neta. É o prazer do convívio com a família reunida. E que feliz eu sou, sem ter de o aparentar! Almoço foi também, este nosso de hoje, dia 17 de março. Se recuássemos, pelo menos, 27 anos, a esta hora, provavelmente, já teríamos assistido ao desfile das forças em parada, na Praça do Geraldo e ouvido o discurso inflamado do comandante apregoando aos ouvintes, lérias para enfeite do Dia do Batalhão. Loas que, uma assistência não muito numerosa, ouvia em silêncio com acenos de cabeça, às vezes, como que a convencer que estava convencida de tudo quanto ouvia. E o comandante, com a mesma toada, continuava no seu longo desfiar: 369 apreensões, no valor de 427 milhões, 253 mil e 019 escudos, correspondentes a 15 vacas tresmalhadas por doença e provindas de Espanha, em Tagarrais, Secção de Arronches; 28.800 cigarros com filtro da marca Marlboro e a boiar no mar a meia légua de Meia Légua da Secção de Olhão e 54 pares de sutiãs XXII, contrafeitos com a etiqueta da "Intimissimi" que ciganos vendiam no mercado de Tavira e destinados a senhoras de S' s grandes. Discurso acabado e mais ou menos coisa, entidades e convidados rumavam para um almoço, almoço nunca feito nesta Casa do Povo de Canaviais. Edifício, ao que parece, construído em 1911 por um grupo de agricultores agrícolas destinado a escola de seus filhos. Com o rodar do tempo e integrado no Estado, passou a designar-se Casa do Povo de Évora com objetivos de caráter cultural, social, desportivo e recreativo que, ainda hoje se mantêm no seu estatuto e, pouco tempo depois assumiu o nome da freguesia onde se implanta: Canaviais. Em 2007, uma senhora acabada de aposentar e, aqui presente, não querendo ficar em casa a tratar dos filhos e a coser as meias do marido e, porque os filhos já crescidos não requerendo cuidados especiais e o marido as não tivesse e, mais pela força do seu irrequieto dinamismo, candidata-se à presidência da Casa do Povo com dois fins a atingir: estancar a enorme dívida que gerências anteriores a haviam mergulhado e gerar fundos destinados a melhorias que o edifício tanto carecia. Findos os 4 mandatos e conseguido com satisfação ao que se propôs, transita a presidência para a atual. Outra senhora, dotada de igual vivacidade que, prosseguindo o mesmo trilho, tem conseguido que se colham efeitos desse tão grande esforço. aqui que se realizam em janeiro, concursos para o melhor vinho, sopa, doce, licor e compota, artigos regionais avaliados por júri profissional e independente. Como naturalmente observaram, letras garrafais ocuparam parte da 1.ª página do "Diário do Sul", noticiando que a sopa de mogango com feijão catarino "arrasou, avassaladoramente este ano as restantes 22 sopas em prova. A executora desse caldo, aqui presente, recebeu ainda o 3.º prémio, em compotas, com uma mamelada feita a preceito que, pelo que foi dito no recinto, tinha macieza mais delicada que a do 2.º prémio, a qual, também sendo marmelada, seria feita mais apressada e atabalhoadamente, sem a ternura requerida. O creme, na categoria de Doces, ao qual já havia aludido em palestra de anterior Encontro e, com que habitualmente concorro, este ano foi ignorado pelo júri, facto que bastante me surpreendeu por ser feito de experiência acumulada de outros tantos com honras de classificação do 3.º. prémio, ao 2.º e, até mesmo do 1.º. Este, feito pelas mesmas mãos, no mesmo tacho, ingredientes na validade, igual número de rotações com a colher de pau e, com aquela espessura tão próxima do ponto de rebuçado, sabor e deleite tão característico da mexidela compassada e com a técnica de quem a sabe fazer, não mereceria, por isso, desprezo tal. Paciência: Esta Casa do Povo, não é hotel, nem hostel, nem pensão ou casa de pasto, de comes e bebes, taverna ou tasca, é, por decreto uma IPSS Instituição privada que sobrevive à custa de cotas de sócios, nos quais me incluo, maioritário e em dia, de subsídios pagos pela Segurança Social em função das crianças que frequentam o espaço do ATL e, principalmente, pelos vários eventos patrocinados ao longo do ano. O nosso Almoço é um exemplo, tais como outras refeições só confecionadas, a pedido e exclusivamente. Por causa disso, pedia autorização para em nome agradecer, pela prestação empenhada, zelosa e sempre atenta da presidente da Casa do Povo, Ana Maria Pedrosa, bem como a este punhado de gente, pela colaboração que prestou e que aqui veio, graciosamente, para ambientar e nos servir com a e cortesia de profissionais que o não são. A todos vós, muito obrigado. Depois e, ainda que pareça mal, deixai-me igualmente agradecer a ti, Isaura Maria que, ainda tendo a Casa do Povo no coração, aqui foste, a organizadora, mola e motor do nosso Encontro tanto aqui, como acolá, ali e além a que não se escapa a cerim6nia religiosa. Muito obrigado. Também o desejava fazer à Maria Emília -Milita Costa- pela disponibilidade e prontidão a executar pormenores, pela ideia oportuna sempre, sempre preocupada para que o Encontro seja o melhor de sempre. Muito obrigado. A ti, Vitória, pelo apetite às sopas do Alentejo, pelo prazer de nos encontrar, pela amizade inequívoca por todos sentida, pelo carisma entranhado que em ti reside e de só tu seres capaz de, pelo estímulo, reunir tão grande número de presentes. Muito obrigado.
Aos presentes... pela vossa presença, pela satisfação de todos nós podermos, assim, saudar, falar, confraternizar e recordar. Sem vós, claro, não haveria Encontro. Muito obrigado, Não escrevi mais, consequentemente, nada mais saberei dizer, a não ser... o que de bem a todos vos desejo.
Muito Obrigado
DISSE
Augusto Ribeiro Pinto
Ten Cor. (Ref)