Uma leitura de Histórias do Contrabando e
não só!
Em linguagem simples, por
vezes ingénua e, talvez, excessivamente despretensiosa, Histórias do Contrabando e
não só!, de Fernando Cantista
Pizarro Bravo, é, sob a forma de narrativa, um verdadeiro Ensaio sobre o contrabando raiano. Salvo referências a alguns
termos técnicos, e ainda assim remetidas para notas de rodapé, o corpo da obra
não se detém em definições nem em análises intelectualizadas à procura de
conteúdos e conceitos majestáticos, como é timbre deste género
literário-científico. No entanto, de vivência em vivência relatadas, dá-nos
conta de uma realidade que, de tão vivida, se nos torna clara como água nos
seus múltiplos constituintes e... cambiantes.
O contrabando raiano é,
nestas páginas, e visto sobre a estratificação que o tempo dá das coisas e dos
conceitos, a evidência que já há muito se vinha revelando: uma actividade de
envolvimento cósmico a que não escapa nenhum dos protagonistas da comédia
humana, no seu intercâmbio aos diversos níveis, incluindo o do sagrado. Se é concebível imaginarmos um crente guarda
fiscal a implorar a protecção divina
para o êxito da sua missão, não é menos verosímil que o contrabandista
recorra à mesma instância para o bom termo da sua actividade (págª 11), que, em
geral, a sociedade aceita com benevolência (págª 49...). Se o agente da
autoridade crê no dever patriótico de defender a Fazenda Nacional (págª 25),
também não se escandaliza que o seu vizinho faça pela vida descaminhando umas
panas, uns bezerros, ou uns caramelos, de que pouco mal virá ao mundo, se
comparado com os grandes tráficos que campeiam nas altas instâncias das
influências ...Daí que o humanismo das relações (págª 65, 75...), a sã
convivência (págª 49, 51...), sem promiscuidade, dos figurantes desta comédia
(no sentido grego, isto é, das peripécias da vida quotidiana da comunidade, por
oposição a tragédia, construída em torno dos mistérios que envolvem o destino e
as ontológicas limitações e insatisfações da alma das elites), as emoções e os
dramas partilhados quando em causa está a dignidade humana (págª 48, 53, 74...)
sobretudo a dos mais novos ou dos mais desfavorecidos, o humor das situações a
desdramatizar uma vida já por si dura e madrasta (págª 23, 31,32,39...), o jogo
da matreirice do contrabandista contra a perspicácia do guarda fiscal
desportivamente assumido por ambas as partes (págª 25, 37, 49, 67, 76...), sejam
a pedra de toque deste ambiente raiano
em que o “cá” e o “lá” nem pelo falar se destinguem (pág. 47).
Histórias do Contrabando e não só!, (numa leitura talvez subliminarmente
influenciada pela actual globalização do
comércio e do consumo sem limites e quase sem regras) apresenta-se-nos, assim,
como agente desmitificador de ideários construídos sobre estereótipos sociais e
económicos rigidamente definidos, mas de
conteúdos balofos ou sobrevalorizados, e ainda como agente desmistificador de
práticas lesivas da normalidade das relações sociais, em comunidades limitadas
culturalmente, mas estritamente unidas por laços afectivos.
Verdadeiramente inovador
nestas páginas, e digo-o entre o humor e a verdade factual..., é a definição de
uma nova categoria de mercadoria contrabandeável, a missa, exactamente essa
cerimónia celebrada por sacerdote
católico. Em tempos de transacções comerciais a propósito de tudo e de nada,
numa espiral de materialismo sem pingo de espírito que caracteriza grande parte
dos comportamentos humanos actuais, como não classificar de contrabando a
compra de missas espanholas, se ela implica a saída de divisas do País? Contra
simonia semelhante - o tráfico de indulgências - se desencadeou, no século XVI,
a Reforma Protestante, que haveria de transformar o mundo ou, pelo menos,
definir o seu progresso civilizacional. Países como a Holanda, a Suíça, a Alemanha
e os nórdicos, construiram, sobre uma visão mais humana e menos interesseira
das Escrituras, sociedades mais justas, mais democráticas (ressalvo,
evidentemente a Alemanha hitleriana), mais progressistas. Bem engraçado,
Pizarro Bravo!
8 de Janeiro de 2013
Manuel Neto