Evidências
Os meus amigos, e inimigos, que fujam, como o diabo da
cruz, de quem se apresente com evidências, que é como quem diz “ora aqui está a
verdade”. A verdade é-o para mim, podendo dar-se a circunstância de o ser
também para os outros. Eleger a verdade como algo de absoluto e de aceitação
obrigatória pela comunidade, tem feito face da terra um contínuo cemitério.
O paradoxo da questão é que, ao abordá-la, nos socorremos
de evidências, isto é, de verdades, como por exemplo “a verdade mata”, que não dispensamos na
elaboração do discurso, por mais céptico que ele seja. Significa isto que nem
sempre o relativismo subjacente à pretensa tese que aqui apresento de “a cada
um a sua verdade” é estéril: subliminarmente, essas verdades impõem-se ao nosso
espírito, para se constituirem em estrutura da nossa existência social.
E tão compulsoriamente e em abundância elas se me
apresentam, que nem os ditos lúcidos caminhos epistemológicos de um Kant ou de
um Descartes se me afiguram bastantes para ofuscarem o entendimento claro e
inequívoco que tenho delas. Ao primeiro, contrariando-lhe o princípio de que da
realidade só conhecemos o fenómeno, remetido o númeno para a inacessibilidade
do conhecimento humano; ao segundo, reprovando-lhe o método que tão compassada e
arduamente desenvolve a partir da tão escassa certeza do “penso, logo existo”,
achando ele que não havia outras para ir removendo dúvidas e falsidades que,
genesicamente, nos ensombram o pensamento.
Definidas assim as regras do meu jogo, entre a hipérbole,
a vaidade e alguma virtude, parto, de consciência tranquila, para as minhas
evidências, a que um resquício de humildade, que guardo bem no imo do meu ser, podia chamar
também de “divagações de um espírito casmurro que envelhece e que da vida já firmou algumas certezas, sem
apelo nem agravo de argumentações alheias”. Aos que me queiram acompanhar
reconheço o direito de se passearem bamboleando, deixando-me a falar sozinho,
ou, tomando conhecimento das minhas propostas, a cobri-las de um sarcástico
desdém.
A primeira evidência vai servir-me também de método:
“tudo está relacionado com tudo”. Por isso considero aleatória a ordem por que
as apresente. Neste momento, guardo as restantes, isto é, todas menos esta, em
uma tômbola, de onde as irei retirando uma a uma, ao acaso. Creio firmemente no
efeito borboleta. Creio como um fanático nas leis da necessidade. Creio
cegamente que 2 e 2 são 4.
E eis a segunda: “ a informação está a envenenar-nos os
dias, as horas, os minutos”.
Ilustrar esta evidência custar-me-ia o espaço que tenho reservado para elas todas.
Por isso referirei apenas algumas cenas maradas.
Há canais de televisão e de rádio, muitos, que nos
bombardeiam de notícias em cima do acontecimento, quase sempre escabrosas (neste
contexto, os anúncios propagandísticos são pura suavidade!), e, não as havendo,
repetem-nas estridentemente, como martelo em bigorna; o mais anódino
acontecimento, em qualquer canto do país, desde que comporte alguma
extravagância, mórbida, de preferência, pode figurar nos ecrans ou cavalgar as
ondas sonoras como notícia de “ultima hora”; há instituições públicas que não
despegam dos coloridos alertas de perigo iminente, e assim passamos, por
exemplo, da seca extrema à inundação catastrófica em fração de segundos, sem um
intervalinho que seja para retemperar os humores.
Os casos seriam de somenos, sendo eles objectos em si, autónomos e independentes,
com a sua vida própria, dos quais se possa dizer “isso é lá com eles”. Mas não, interferem
connosco a cada momento, deprimem-nos até ao fosso mais cavernoso, deformam-nos
a personalidade e viciam o juízo que fazemos da realidade. Através deles, o
mundo é uma extensa arena em que já não é o Bem e o Mal, mas o Mal e o Pior que
se degladiam por se apropriarem da étia e da moral. E, no entanto, com um superficial
mergulho na História, em tempo roubado à obsessão da notícia, ficaríamos a
saber que não têm comparação, em amplitude e nos seus efeitos catastróficos, as
Fomes, Pestes e Guerras de outrora com as de hoje, e que como tendência, e
globalmente, o respeito da pessoa colectiva pela pessoa individual é uma marca,
concreta e definida, que caracteriza as actuais relações humanas a todos os
níveis.
Vamos à terceira: “não há nenhum mistério na morte”.
O que é de fácil verificação. Que seria do planeta se não
houvesse morte? Um depósito de mortos-vivos, condenados a inventar incessante e
exclusivamente espaços e ardis relacionais, sem outro tempo e outras sensações para
viver...Isto até ao momento em que o planeta, observado do espaço, se
assemelhasse a um monstruoso pacote de esparguete em forma de ouriço, cada vez
mais denso, cada vez mais denso. Ah! Resta ainda o espaço aéreo... e o que se
pode conquistar à terra, ocando-a. E depois, ainda... Quase nos infantilizamos
a imaginar coisas tão absurdas (juntemos aos humanos os outros viventes) , que
assim seria a vida se não houvesse morte, um absurdo de casos e de situações,
um absurdo de vida. E divagava eu nestes absurdos considerando-os tema para uma
boa ficção, e afinal alguém se antecipou com ele , aperceberam-se disso agora
as minhas reminiscências literárias, já cada vez mais longínquas e difusas, felizmente
sujeitas à lei da morte. O José Saramago escreveu e está tudo dito n’ As Intermitências da Morte, não vale a
pena prolongar eu mais esta agonia, que é a ausência da morte.
E “no prazo de 10 anos, vá lá, 20, acabam-se as touradas”.
Esta é a quarta.
Diz-que é uma tradição cultural que abarca Portugal
inteiro. E por isso é moralmente boa? A cultura asteca centrava os seus rituais
em torno do sacrifício humano; em certas regiões da Índia era tradição a viúva
dever lançar-se à pira onde o falecido marido era cremado; na Indonésia é
cultural a ablação genital feminina; enfim, nãofaltam exemplos de tradições
sanguinárias, que todos nós condenamos, a marcar culturas por essa Humanidade fora.
Diz-que o animal não sente. Não sente?!!! Que significa
”o animal sente”, pressuposto nas leis condenatórias dos maus tratos a animais?
E que animais? É feita excepção aos touros? Ou a violência praticada contra
estes é virtuosa por ser ritualizada e
pomposamente exibida?...
Diz-que há toda uma vida económica que orbita em torno da
res tauromáquica. É verdade. Por
isso, a moratória dos 10, 20anos. E passado este tempo, se não antes,
havemo-nos de perguntar, incrédulos, como foi possível que animais de
compaixão, que nós somos, pudessem ter encontrado justificação emocional e
racional para encurralar e torturar num arena outros animais, para mostra de
coragem e valentia do lidador e gáudio dos circunstantes...Talvez mais
incrédulos ainda do que agora quando lembramos, como um pesadelo, autocarros a
abarrotar de gente, e de fumadores em plena execução do acto.
Agora a quinta: “do ponto de vista holístico, progresso é
retrocesso na preservação do planeta”.
Tenho procurado, e não encontro, um único ítem de
progresso que não se baseie, directa ou indirectamente, na exploração dos
recursos naturais. Os grandes saltos do dito progresso, isto é, as grandes
revoluções agrícolas e industriais, foram o que se viu, um regabofe. Tem havido
agora alguma contenção, e é possível que num futuro, talvez já próximo, o Homem
desenvolva vontades e meios para, em muitos domínios, manter os seus níveis de
conforto ou até aumentá-los, sem encargos para a Natureza. O que me parece
intransponível é que, no fim, restará sempre a necessidade de nos alimentarmos,
e que as tarefas desenvolvidas em torno da obtenção de alimentos, manipuladas pela
inteligência, não mais voltarão aos tempos paleolítcos da caça e da recolecção.
Na situação actual, sem que o vulgo tenha plena consciência
disso, a exaustão do planeta muito deve à produção de alimentos, em muitos
casos de efeitos catastróficos. Por outro lado, o entusiasmo suscitado pela agricultura
biológica tem uma grande componente romântica: as suas característias não se
coadunam com a monocultura extensiva, e o seu êxito depende em grande medida da
qualidade dos solos; por isso, é impossível implementá-la em suficiência a
nível planeário; acresce, ainda, que este tipo de agricultura carrega os seus
níveis de poluição, ao contrário do que muitos julgam. Quero eu dizer que ao
natural processo de degradação e envelhecimento do planeta se junta, inapelavelmente,
a aceleração provocada pela acção do Homem na sua procura incessante de
condições de bem estar, de que, uma vez adquiridas, não mais prescinde.
Há por aí uns futurismos a anunciarem um mundo de outras
realidades, que nada terão a ver com as actuais. Duvido, porém, que o Homem, esse
complexo de oxigénio, carbono, hidrogénio, azoto, cálcio, fósforo, enxofre...,
isto é, um composto em plena osmose com a Natureza, alguma vez consiga reduzir
o seu metabolismo, e todas as actividades que o orbitam, a índices inofensivos
para o ambiente. A não ser que evolua, e tem de ser rápido, para anjo.
Entretanto, todas as manhãs, ao acordar, dou graças a
deus por termos ainda presidentes de junta, presidentes de câmara, ministros e
primeiro ministro, que, com os seus pares além-fronteiras, se empenham arduamente
em reverter, ou pelo menos travar, as alterações climáticas e, ao mesmo tempo,
se desunham por proporcionarem aos seus cada vez melhores condições de vida,
com meios e processos, inofensivos, quem sabe?, em misteriosas regiões etéreas
do Firmamento...Malhas de contradições que o destino tece!...
A sexta: “O Natal ocorre todos os anos a 25 de Dezembro”.
E ainda bem. Final do ano. Tempo para reflectir. Tempo
para ajuizarmos que, desde Copérnico, já não somos o centro do Universo, e,
muito menos, que ele tenha sido criado para o Homem. Tempo de, por isso mesmo,
nos comprazermos com todos os seres, na medida em que com eles partilhamos, por
igual, o gozo e a responsabilidade de existir. Tempo para exorcizarmos
angústias, das tantas que, por índole, fabricamos a partir de ninharias, e de
outras tantas que nos assaltam do exterior veiculadas por profetas da desgraça e
por vendilhões de utopias. Tempo de agarrarmos aquele lado do afecto feito de calor
e dádiva, a aquecer quem dá e quem recebe. Tempo de amar perdidamente!
É evidente que tenho mais evidências. Porque umas são
excessivamente fracturantes, e as outras alongariam por demais o texto que já
longo vai, por aqui me fico.
em
Meimão, a 29 dias do Natalde 2018
Manuel Neto