quarta-feira, 28 de novembro de 2018


Evidências

Os meus amigos, e inimigos, que fujam, como o diabo da cruz, de quem se apresente com evidências, que é como quem diz “ora aqui está a verdade”. A verdade é-o para mim, podendo dar-se a circunstância de o ser também para os outros. Eleger a verdade como algo de absoluto e de aceitação obrigatória pela comunidade, tem feito face da terra um contínuo cemitério.
O paradoxo da questão é que, ao abordá-la, nos socorremos de evidências, isto é, de verdades, como por exemplo  “a verdade mata”, que não dispensamos na elaboração do discurso, por mais céptico que ele seja. Significa isto que nem sempre o relativismo subjacente à pretensa tese que aqui apresento de “a cada um a sua verdade” é estéril: subliminarmente, essas verdades impõem-se ao nosso espírito, para se constituirem em estrutura da nossa existência social.
E tão compulsoriamente e em abundância elas se me apresentam, que nem os ditos lúcidos caminhos epistemológicos de um Kant ou de um Descartes se me afiguram bastantes para ofuscarem o entendimento claro e inequívoco que tenho delas. Ao primeiro, contrariando-lhe o princípio de que da realidade só conhecemos o fenómeno, remetido o númeno para a inacessibilidade do conhecimento humano; ao segundo, reprovando-lhe o método que tão compassada e arduamente desenvolve a partir da tão escassa certeza do “penso, logo existo”, achando ele que não havia outras para ir removendo dúvidas e falsidades que, genesicamente, nos ensombram o pensamento.
Definidas assim as regras do meu jogo, entre a hipérbole, a vaidade e alguma virtude, parto, de consciência tranquila, para as minhas evidências, a que um resquício de humildade, que  guardo bem no imo do meu ser, podia chamar também de “divagações de um espírito casmurro que envelhece  e que da vida já firmou algumas certezas, sem apelo nem agravo de argumentações alheias”. Aos que me queiram acompanhar reconheço o direito de se passearem bamboleando, deixando-me a falar sozinho, ou, tomando conhecimento das minhas propostas, a cobri-las de um sarcástico desdém.

A primeira evidência vai servir-me também de método: “tudo está relacionado com tudo”. Por isso considero aleatória a ordem por que as apresente. Neste momento, guardo as restantes, isto é, todas menos esta, em uma tômbola, de onde as irei retirando uma a uma, ao acaso. Creio firmemente no efeito borboleta. Creio como um fanático nas leis da necessidade. Creio cegamente que 2 e 2 são 4.

E eis a segunda: “ a informação está a envenenar-nos os dias, as horas, os minutos”.
Ilustrar esta evidência custar-me-ia  o espaço que tenho reservado para elas todas. Por isso referirei apenas algumas cenas maradas.
Há canais de televisão e de rádio, muitos, que nos bombardeiam de notícias em cima do acontecimento, quase sempre escabrosas (neste contexto, os anúncios propagandísticos são pura suavidade!), e, não as havendo, repetem-nas estridentemente, como martelo em bigorna; o mais anódino acontecimento, em qualquer canto do país, desde que comporte alguma extravagância, mórbida, de preferência, pode figurar nos ecrans ou cavalgar as ondas sonoras como notícia de “ultima hora”; há instituições públicas que não despegam dos coloridos alertas de perigo iminente, e assim passamos, por exemplo, da seca extrema à inundação catastrófica em fração de segundos, sem um intervalinho que seja para retemperar os humores.
Os casos seriam de somenos, sendo eles  objectos em si, autónomos e independentes, com a sua vida própria, dos quais se possa dizer  “isso é lá com eles”. Mas não, interferem connosco a cada momento, deprimem-nos até ao fosso mais cavernoso, deformam-nos a personalidade e viciam o juízo que fazemos da realidade. Através deles, o mundo é uma extensa arena em que já não é o Bem e o Mal, mas o Mal e o Pior que se degladiam por se apropriarem da étia e da moral. E, no entanto, com um superficial mergulho na História, em tempo roubado à obsessão da notícia, ficaríamos a saber que não têm comparação, em amplitude e nos seus efeitos catastróficos, as Fomes, Pestes e Guerras de outrora com as de hoje, e que como tendência, e globalmente, o respeito da pessoa colectiva pela pessoa individual é uma marca, concreta e definida, que caracteriza as actuais relações humanas a todos os níveis.

Vamos à terceira: “não há nenhum mistério na morte”.
O que é de fácil verificação. Que seria do planeta se não houvesse morte? Um depósito de mortos-vivos, condenados a inventar incessante e exclusivamente espaços e ardis relacionais, sem outro tempo e outras sensações para viver...Isto até ao momento em que o planeta, observado do espaço, se assemelhasse a um monstruoso pacote de esparguete em forma de ouriço, cada vez mais denso, cada vez mais denso. Ah! Resta ainda o espaço aéreo... e o que se pode conquistar à terra, ocando-a. E depois, ainda... Quase nos infantilizamos a imaginar coisas tão absurdas (juntemos aos humanos os outros viventes) , que assim seria a vida se não houvesse morte, um absurdo de casos e de situações, um absurdo de vida. E divagava eu nestes absurdos considerando-os tema para uma boa ficção, e afinal alguém se antecipou com ele , aperceberam-se disso agora as minhas reminiscências literárias, já cada vez mais longínquas e difusas, felizmente sujeitas à lei da morte. O José Saramago escreveu e está tudo dito n’ As Intermitências da Morte, não vale a pena prolongar eu mais esta agonia, que é a ausência da morte.

E “no prazo de 10 anos, vá lá, 20, acabam-se as touradas”. Esta é a quarta.
Diz-que é uma tradição cultural que abarca Portugal inteiro. E por isso é moralmente boa? A cultura asteca centrava os seus rituais em torno do sacrifício humano; em certas regiões da Índia era tradição a viúva dever lançar-se à pira onde o falecido marido era cremado; na Indonésia é cultural a ablação genital feminina; enfim, nãofaltam exemplos de tradições sanguinárias, que todos nós condenamos,  a marcar culturas por essa Humanidade fora.
Diz-que o animal não sente. Não sente?!!! Que significa ”o animal sente”, pressuposto nas leis condenatórias dos maus tratos a animais? E que animais? É feita excepção aos touros? Ou a violência praticada contra estes é virtuosa  por ser ritualizada e pomposamente exibida?...
Diz-que há toda uma vida económica que orbita em torno da res tauromáquica. É verdade. Por isso, a moratória dos 10, 20anos. E passado este tempo, se não antes, havemo-nos de perguntar, incrédulos, como foi possível que animais de compaixão, que nós somos, pudessem ter encontrado justificação emocional e racional para encurralar e torturar num arena outros animais, para mostra de coragem e valentia do lidador e gáudio dos circunstantes...Talvez mais incrédulos ainda do que agora quando lembramos, como um pesadelo, autocarros a abarrotar de gente, e de fumadores em plena execução do acto.

Agora a quinta: “do ponto de vista holístico, progresso é retrocesso na preservação do planeta”.
Tenho procurado, e não encontro, um único ítem de progresso que não se baseie, directa ou indirectamente, na exploração dos recursos naturais. Os grandes saltos do dito progresso, isto é, as grandes revoluções agrícolas e industriais, foram o que se viu, um regabofe. Tem havido agora alguma contenção, e é possível que num futuro, talvez já próximo, o Homem desenvolva vontades e meios para, em muitos domínios, manter os seus níveis de conforto ou até aumentá-los, sem encargos para a Natureza. O que me parece intransponível é que, no fim, restará sempre a necessidade de nos alimentarmos, e que as tarefas desenvolvidas em torno da obtenção de alimentos, manipuladas pela inteligência, não mais voltarão aos tempos paleolítcos da caça e da recolecção.
Na situação actual, sem que o vulgo tenha plena consciência disso, a exaustão do planeta muito deve à produção de alimentos, em muitos casos de efeitos catastróficos. Por outro lado, o entusiasmo suscitado pela agricultura biológica tem uma grande componente romântica: as suas característias não se coadunam com a monocultura extensiva, e o seu êxito depende em grande medida da qualidade dos solos; por isso, é impossível implementá-la em suficiência a nível planeário; acresce, ainda, que este tipo de agricultura carrega os seus níveis de poluição, ao contrário do que muitos julgam. Quero eu dizer que ao natural processo de degradação e envelhecimento do planeta se junta, inapelavelmente, a aceleração provocada pela acção do Homem na sua procura incessante de condições de bem estar, de que, uma vez adquiridas, não mais prescinde.
Há por aí uns futurismos a anunciarem um mundo de outras realidades, que nada terão a ver com as actuais. Duvido, porém, que o Homem, esse complexo de oxigénio, carbono, hidrogénio, azoto, cálcio, fósforo, enxofre..., isto é, um composto em plena osmose com a Natureza, alguma vez consiga reduzir o seu metabolismo, e todas as actividades que o orbitam, a índices inofensivos para o ambiente. A não ser que evolua, e tem de ser rápido, para anjo.
Entretanto, todas as manhãs, ao acordar, dou graças a deus por termos ainda presidentes de junta, presidentes de câmara, ministros e primeiro ministro, que, com os seus pares além-fronteiras, se empenham arduamente em reverter, ou pelo menos travar, as alterações climáticas e, ao mesmo tempo, se desunham por proporcionarem aos seus cada vez melhores condições de vida, com meios e processos, inofensivos, quem sabe?, em misteriosas regiões etéreas do Firmamento...Malhas de contradições que o destino tece!...

A sexta: “O Natal ocorre todos os anos a 25 de Dezembro”.
E ainda bem. Final do ano. Tempo para reflectir. Tempo para ajuizarmos que, desde Copérnico, já não somos o centro do Universo, e, muito menos, que ele tenha sido criado para o Homem. Tempo de, por isso mesmo, nos comprazermos com todos os seres, na medida em que com eles partilhamos, por igual, o gozo e a responsabilidade de existir. Tempo para exorcizarmos angústias, das tantas que, por índole, fabricamos a partir de ninharias, e de outras tantas que nos assaltam do exterior veiculadas por profetas da desgraça e por vendilhões de utopias. Tempo de agarrarmos aquele lado do afecto feito de calor e dádiva, a aquecer quem dá e quem recebe. Tempo de amar perdidamente!



É evidente que tenho mais evidências. Porque umas são excessivamente fracturantes, e as outras alongariam por demais o texto que já longo vai, por aqui me fico.


em Meimão, a 29 dias do Natalde 2018
Manuel Neto