sábado, 11 de dezembro de 2021

 "Está tudo ligado"



O que aconteceu em Glasgow (COP 26, de 31 de Outubro a 12 de Novembro) foi o lamento elegíaco que antecede o fim próximo da Humanidade.

É certo que está escrito nas estrelas o fim de todos os ciclos em que se organiza e evolui a Natureza (Universo, Cosmos...), e assim será do nosso Sol, com todos os corpos que o orbitam. À boa maneira da insensibilidade racional que nos caracteriza quanto a acontecimentos projectados para um futuro longínquo, este fim em nada nos perturba, embora já ele devesse ser tido em conta nas reflexões filosóficas do ser que somos, teimosamente obcecados pela imortalidade. O que não estaria nas contas de um observador extraterrestre, que de um ponto fixo do Universo acompanhasse o evoluir da Terra desde a sua formação, era que em tanto a presença do Homem tenha acelerado a progressão geométrica de causas e efeitos na degradação material e existencial a que chegámos.

A culpa é do vizinho, dizemos, sacudindo a água do capote, e se não é do vizinho é do Governo, ou dos governos, reforçamos, atirando com a responsabilidade para cada vez mais longe. E, no entanto, é bem verdade que, tomados de per si cada personagem e cada acontecimento na desastrosa acção desta tragicomédia, não há culpas personalizadas. E a razão é simples: está tudo ligado, sendo a actual realidade planetária o produto da interacção de uma multiplicidade de factores de cujas consequências só a posteriori nos apercebemos, já quando nos confundimos nela como num todo coerente e indestrutível. 

Com a consciência de que estou a iniciar in media res esta minha incursão argumentativa ( para trás fica, por exemplo, o Big Bang, como a causa última da problemática em que nos encontramos), coloco, como causa determinante da aceleração em que tem progredido a degradação do planeta, o presente envenenado que foi dado ao Homem: a sua inteligência. 

Os irracionais não têm passado nem futuro; vivem, sempre viveram, o presente e só o presente. A gazela, que num momento foge para escapar ao predador que a persegue, se adrega escapar, no momento seguinte já está a tosar a erva sem outra preocupação que não seja a de saciar a fome que nesse momento a atormenta. Não assim com o Homem. Inventor do tempo a três dimensões, passou a fazer da vida um circuito de abstrações, cálculos, planeamentos e, até, especulações, com que se vai projectando em realizações que  indelevelmente o marcam e transformam como ser individual e relacional. Senhor do raciocínio, cavalgou a curiosidade insaciável de desvendar os mistérios da Natureza, sempre à custa do desgaste dela. À posse de um bem de que se satura ou em que rapidamente descobre insuficiências hedonísticas, opõe a aquisição de outro numa progressão sem fim de avaliações e inconformismos... Tudo porque dispõe de uma inteligência que não lhe dá tréguas no afã de superar a meta logo que atingida. Como esta faculdade, que consideramos o ápice da superior condição humana, se revela um atropelo àqueloutra que igualmente definimos como marca supremamente distintiva dessa mesma condição, a liberdade! Liberdade...? Mas que liberdade? É mais livre o homem cujas decisões lhe são impostas pela inteligência, do que o animal que somente age segundo as leis da necessidade? 

Uma segunda causa é o deslumbramento, essa afecção da alma que nos coloca em ufana autocontemplação a cada nova realização do intelecto, e que nos impede de vermos e sentirmos para além das consequências que directamente nos afectam. Disso nos dá conta a história da evolução da espécie, cuja inteligência vai sendo capaz de tudo menos de prever as consequências a longo prazo de uma descoberta, de uma atitude, de um comportamento ( a consciência que hoje se tem do “efeito borboleta” é muito recente), e muito menos de prevenir as que lhe possam ser prejudiciais, ou mesmo fatais.

Deslumbrou-se o inventor da roda, porque esta o aliviou do esforço de carregar aos ombros o barro do tegúrio e o fruto das colheitas... Mas foi incapaz de prever quanto este aparentemente inofensivo instrumento haveria de mexer com as nossas vidas, imiscuindo-se em todas as pregas das mais variadas indústrias, acelerando-nos o dia a dia no frenético encurtamento do tempo e do espaço, induzindo-nos a esventrar a terra e a saturar os ares à procura de alimento que lhe acelere as rotações e potencie as serventias.

Deslumbrou-se o inventor da agricultura quando deu por si a comer, sem ter de sair do abrigo, os grãos da espelta que ele próprio semeara e reservara em quantidade... Mas não lhe ocorreu que, num infinito círculo vicioso cada vez mais amplificado, as reservas da sua espelta e de outras iguarias que foi juntando ao cardápio nos levariam, num crescendo recíproco, aos aglomerados populacionais até se chegar a Tóquio. Tóquio? Sim, Tóquio, 30 milhões de habitantes (três vezes a população de Portugal), apenas o maior dos aglomerados, seguido de perto por muitos outros por esse planeta fora. Alimentar tanta boca junta é, por si só, uma tarefa ciclópica; fazê-lo sem recorrer a agricultura e pecuária intensivas, com todos os gravíssimos problemas ambientais que lhe estão associados, não passa de um sonho irrealizável, por mais cimeiras que aconteçam e hortas biológicas que as autarquias promovam. Ainda não compreendi a razão por que não ocupa esta questão o centro das preocupações quando se fala em aquecimento global, desequilíbrio ambiental, ofensas à biodiversidade... É que poderemos (?...), um dia, prescindir dos combustíveis fósseis, eleger definitivamente a bicicleta como meio de transporte, fazer do bairro o nosso mundo... mas não dispensaremos, nunca, o pão da boca (sete mil milhões delas), e o que se junta ao pão, e os ingredientes que é necessário lançar à terra, e a logística da produção, e da conservação, e do transporte, e da distribuição... Até nos falta o fôlego neste oceano de componentes em rigorosa e necessária articulação, mesmo que as pocilgas e os estábulos da produção em série das queridas proteínas dêm lugar às gaiolas de insectos na varanda...

Reverenciaram a Hipócrates os seus contemporâneos como o Pai da Medicina. Porém, nem um nem outros calcularam o triunfal percurso do diagnóstico e da mezinha, que nos foram prolongando a vida e criando a ilusão da imortalidade. Como resultado, temos hoje mais, muito mais, tempo de vida, mas com uma boa parte dela em lares, nas ambulâncias, nas urgências e nas camas dos hospitais, ou entregue a curadores que vão desesperando por incapacidade emocional e física de acompanhar e suavizar a agonia da degradação do corpo e do espírito em que nos vamos perecendo. Uma tão estranha forma de vida, a exigir cada vez mais recursos, cada vez mais insuficientes...

Ao deslumbramento total assistimos já em nossos dias com os polímeros sintéticos a invadir tudo o que é indústria e transacções comerciais. Digo “em nossos dias”, porque foi tudo tão rápido, que, para uma Idade que ainda mal começou (em 1905, com a síntese da baquelite), a chamamos já de Idade do Plástico, com todos os ingredientes identitários de uma nova realidade em existência e consistência plenas. Em tão pouco tempo decorrido, não há hoje ramo de actividade humana que não esteja, de alguma forma, dependente desse primeiro material  sintético produzido pelo Homem. Alarma-se a comunidade internacional com a sua omnipresença, acrescida de uma prolongada durabilidade, estimada em séculos, ou com a sua degradação em micropartículas, que vão incorporando e intoxicando os organismos vivos. Mas, mais uma vez, não cedamos a ilusões: o plástico veio para ficar e fazer parte das nossas vidas.


Há dois tempos em Glasgow. 

No primeiro tempo, os que lá se sentaram em representação dos 197 países deste globo a sufocar em dióxido de carbono, porfiaram, quero crer que em sintonia com os respectivos governantes, em declarar-se preocupados e apreensivos com as condições climáticas que nos vão perspectivando um fim próximo envolto em labaredas. Não havendo varinha de condão que, num instante e sem custos para ninguém, nos faça regressar pelo menos ao clima prè-industrial, logo ali tomaram a palavra, em justa reclamação, aqueles que ainda não saborearam a boa vida proporcionada pelas poluentes revoluções industriais, agrícolas e tecnológicas, ainda que essas revoluções sejam devedoras, em grande parte, à sua força de trabalho e às suas matérias primas. Assim, das medidas acordadas se poderá dizer que, não sendo as melhores, foram as possíveis, repondo um pouco de justiça num contexto de desigualdade inter pares no que respeita a padrões de vida dos povos representados. 

No segundo tempo, estamos já na viagem de regresso às nuas e cruas realidades locais, feitas de pessoas, relacionamentos e necessidades imediatas, ou de bens que, depois de adquiridos, se nos colam como uma segunda natureza e, por isso, imprescindíveis. E o que se segue é o discurso da produção, do reforço das garantias do consumo, do crescimento económico, da criação de riqueza, da melhoria das condições de vida..., isto é, tudo aquilo que contraria a exequibilidade das medidas acordadas na cimeira. Hipocrisia, cinismo, falta de coragem dos governantes?... Nada disso, apenas uma realidade tecida de contradições inelutáveis a envolver governantes e governados: aqueles, de ânimo dividido entre a preservação do planeta e a garantia de bem estar dos que os elegeram; estes, exigindo, por um lado, decisões que garantam o mesmo planeta viável para filhos e netos e, por outro, medidas que garantam abastecimento a tempo e horas de bens de consumo, fortalecimento das redes de assistência sanitária, reforço das estruturas educacionais, apoios certos à produção, disponibilidade dos diversos tipos de energia, fiabilidade e conforto dos transportes públicos, estabilidade e promoção laboral...etc., etc., etc. …

Não irei tão longe dizendo que estamos irremediavelmente perdidos já no curto prazo. Há um fosso definitivo entre os polos daquelas contradições, mas a mesma inteligência que nos levou a elas há-de ser capaz de as suavizar e acrescentar a “...este viver aqui neste papel descripto” (Ângelo de Lima, 1872-1921, em carta dirigida a Miguel Bombarda) mais uns anos, talvez uns bons séculos, de entusiasmos, desânimos, ansiedades, prazeres e desprazeres. Direi mesmo, com Camões (“Sobolos rios que vão...”),

...que do que mal cantei

a palinódia já canto...

Era possível outra maneira de evoluir? Lograríamos de outra forma chegar à catedral gótica, a Taj Mahal, à Pietá, à Noite estrelada (Van Gogh), à sinfonia, ao Hey Jude, ao D.Quixote de la Mancha, à especulação filosófica, aos segredos do átomo, ou mesmo à organização espacial e estética de uma grande cidade...? Nunca o saberemos. Sabemos apenas que esta é a nossa realidade e, porque não há comparação, o melhor dos mundos. Sirvamo-nos dele, degustêmo-lo, moderadamente, para que dure mais um pouco...


Fio dental


Ah! fio dental, fio dental...

Fi--------------------------------o den------------TAL

Ui! esse intersticial fio dental!

Viver sem fio dental? ----------OH!

antes o aquecimento global!

Fio--------------------------------------------DENTAL

                   intersticial...


Parede, 10 de dezembro de 2021

Manuel N.