sábado, 26 de dezembro de 2015

Recolectar
A rotina. Essa cavernosa mãe de todos os vazios, de todas as depressões. Tinha, pois, decidido suspender os meus Votos de Natal, de tal modo me soavam já a rabanadas. Eis que, no entretanto, decide o governo apresentar o seu programa, centrados os objectivos em torno do consumo, ao mesmo tempo que a Paris afluíam quase todos os governantes da Terra em demanda de antídoto para o aquecimento global. Pareceram-me muitas as contradições, e por momentos me soltei do sonambulismo em que esta sociedade da abundância me retém narcotizadamente prostrado.
Os humanos, sabendo que o Planeta está, como qualquer organismo, endemicamente marcado pela morte, tentam desesperadamente retardá-la, depois de, desde os alvores do sedentarismo, a terem loucamente apressado no festim de todas as ganâncias. Assim é a inteligência humana: a cereja envenenada no topo do bolo. De conquista em conquista dos segredos da Natureza, eis-nos chegados, como Pirro, à iminência do Armagedão final, em que, no dizer de Shopenhauer, é a Vontade que supera a Inteligência na tomada de decisão sobre a natureza e o sentido das coisas. Pois diz-me, irmão, se, aqui chegados, depois de tanta descoberta feita por esse expoente evolutivo que é a Inteligência humana, a tua Vontade prescinde do calor e do frio manipulados, das locomoções propulsionadas, das provisões alimentares, das próteses robóticas, do automatismo das armas, da informação a distância, da saúde em provetas e comprimidos, da vida em quantidade... Não, não prescindes, tal como os 190 e tantos governantes da Terra, que, em Paris, ansiavam por regressar a Penates e às boas graças dos seus súbditos, proporcionando-lhes as cada vez mais completas e sofisticadas condições de consumo...até que a nós próprios nos consuma a geena.
Vislumbro, ao fundo do túnel, a possibilidade de superarmos este quadro apocalíptico: que a esta Vontade instintiva, que subrepticiamente nos determina e condiciona os comportamentos, saibamos opor a Vontade caldeada pela Razão de simplesmente vivermos ao ritmo da Natureza, no respeito pelos seus mistérios. É frase feita, até à náusea repetida. O que talvez não tenha sido ainda enunciado, por ignorância ou mero pudor, é a sua fórmula prática: voltar à recolecção e à predação natural como forma de subsistência. Por mim, introduzi já na minha dieta bolotas, saramagos e medronhos com fartura, e tenho montado umas emboscadas, embora sem êxito, por enquanto, a uma lebre que resiste ali para os lados da minha Barroca Funda. Se todos me seguirem o exemplo, é quase garantido que o planeta retome a sua inexorável, mas muito mais lenta, progressão para a morte. Restar-nos-ão, assim, uns bons séculos em que será ainda possível recriar bucólicos ambientes virgilianos com melodiosos zumbidos de atarefadas abelhas e cabritinhos saltando em verdejantes e floridos prados ao som de amenas flautas. 
Sem esta conversão, irmão, é o fim que nos espreita ao virar do século, ou já da próxima esquina, se não tivermos a coragem e o engenho de evitar os esquinosos programas de consumo dos nossos governantes.
Meimão, 13 de dezembro de 2015
Manuel Neto