sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Guardas e contrabandistas

Ouvira dizer muitas vezes que para a Guarda-fiscal só iam os contrabandistas. Isso era dito com más intenções. Obviamente que só podia ser com más intenções. Ele, enquanto contrabandista, dissera-o também muitas vezes, pois que até conhecia alguns nessa condição. Mas o destino às vezes é surpreendente: acabado o serviço militar obrigatório o Tonho da Mochila, por influência de um amigo do pai, mete os papéis para a Guarda e então não é que é chamado? Ora se ele estava para se casar e se lhe aparecia aquela hipótese de uma vida melhor porque não aproveitar? E foi incorporado no ano de 1947 tendo sido colocado no posto de S. Brás dos Matos, na Mina do Bugalho, no concelho do Alandroal, ali bem junto ao rio Guadiana que, por mor da subida das águas do Alqueva neste momento já está submerso. Foi ali que “desemburrou”, como se costuma dizer. Mas as suas origens não eram aquelas e então nada melhor do que tentar aproximar-se de casa pois que ninguém vive melhor do que quem vive junto dos seus. E ao fim de ano e meio de S. Brás dos Matos, o nosso guarda António Santos, ex-contrabandista Tonho da Mochila, é colocado no posto de Galegos, já muito perto da sua santa terrinha que era S. Julião, concelho de Portalegre. Hoje, reformado, mais não faz do que desfazer o novelo das suas recordações, trazendo ao de cima situações bastante caricatas e há uma que sempre, mas sempre, se sobrepõe às outras.
Talvez vos deva explicar porque é que o guarda António Santos era o Tonho da Mochila antes de ser incorporado naquela força militarizada. É que ele conseguia sempre trazer uma “mochilada” de contrabando maior que o dos seus colegas, quando ia a La Codosera nas imediações da sua terra. Mas este esclarecimento até é irrelevante para a nossa história, pelo que vamo-nos centrar no tal episódio mais marcante de quantos passaram pela vida deste guarda e que o marcou definitivamente.
Chegado ao posto de Galegos, depressa se entrosa com a sociedade civil, não deixando de ser curioso que havia um certo limite, por vezes bem definido, que impunha até onde se poderiam estender as amizades e as companhias. Ao fim de três meses de se ter apresentado ao cabo Marques, comandante do posto, este chamou o guarda António Santos ao seu gabinete: é que durante este tempo todo o jovem ainda não apresentara qualquer serviço, não fizera qualquer apreensão. Era assim: ele sabia que havia que se mostrar serviço, mas caramba, as pessoas, entenda-se os contrabandistas, também tinham família para sustentar, também tinham encargos. Ele, melhor que ninguém, sabia como era. Mas o raspanete do Cabo Marques foi demasiado severo e o nosso guarda ficou bastante apreensivo. Tinha que fazer qualquer coisa. À tarde foi até à venda onde se juntavam os usuais sobreviventes do contrabando, para tentar sacar algo. Para disfarçar, bebeu um pirolito que lhe subiu ao nariz, tossiu engasgado e ouviu alguém dizer entre dentes: Estás aqui a mais! Antes bebesses um copo de veneno...
Depois de beber o pirolito, o nosso guarda saiu. Era já quase lusco-fusco quando a meio do caminho entre a venda e a sua casa ouviu alguém chamá-lo baixinho. Sempre houve bufos, gente infiel, denunciantes. Quem o chamava era o Manel Zarolho, assim apelidado por causa de um tiro de raspão que levara num olho, disparado por um guarda a quem tentara fugir certa vez, com uma taleigada de café.
- Senhor guarda, se me ajudar eu dou-lhe umas pistas.
- Umas pistas? O que queres dizer, ó Zarolho?
- Então é assim: logo, eu e mais três companheiros vamos à Fontanheira levar umas cargas de café. Eu tenho andado com azar pois este mês já fui apanhado duas vezes pelos carabineiros e não tenho ganho nem para a onça de tabaco. O que eu tenho a propor ao senhor guarda é o seguinte: nós entre as duas e as três vamos regressar carregados, pela vereda que conduz à parede do Porto da Azinheira. Eu sou o da frente e você só tem que apanhar o de trás que assim já o senhor apresenta serviço e eu safo-me desta vez. Está a compreender? Eu não sou nenhum filho da mãe, nenhum denunciante, mas com o azar com que ando ultimamente, já tenho medo de tudo! Se eu fosse mau dizia para me deixar safar só a mim e que apanhasse os outros três. Mas não, e assim você fica bem visto e nós safamos alguma coisa. Mas não pode dizer nada, senão eles matam-me. Combinado?
- Está bem, e como sei que não me estás a enganar?
- O senhor conhece-me e se não for assim como eu lhe digo, depois dá-me uma sova das valentes na primeira vez que me encontrar.
- Fica combinado. Vou repetir para não falhar nada: entre as duas e as três da madrugada, no Porto da Azinheira, na vereda que conduz à parede. Tu és o primeiro, eu apanho o último...
Cada um seguiu o seu caminho. António Santos foi jantar calmamente uma sopinha da panela, sonhando com o seu primeiro serviço naquele posto, enquanto o Zarolho foi ter com os companheiros, certo de que se iria safar. Mal se fez de noite carregaram umas mochilas de cerca de quarenta quilos de café cada um e foram a caminho da Fontanheira. Uma vez lá chegados, descarregaram as cargas, e dormiram um bocado para descansar e recobrar forças para no regresso a casa poderem trazer mais uns trinta quilos de toucinho e algum azeite ou mel, já que agora não havia fardos de cortiça para contrabandear. Descansaram, dizia eu, mas não todos. O Zarolho andava lá enrabichado com uma espanhola, foi namorar e quando deu pelas horas já os companheiros tinham saído. Não havia muito tempo é certo, mas já não os vislumbrava apesar de saber que eles iriam por perto e espaçados de cerca de dez minutos cada um. Por sua vez o guarda António Santos, à civil mas de pistola e bem agachado junto ao local onde os contrabandistas tinham que saltar a parede do Porto da Azinheira, esperava pacientemente no seu aguardo. O tempo custava-lhe a passar. A noite estava de luar mas o céu encoberto por nuvens altas, não lhe dava lá grande visibilidade. Começava a desesperar quando ouviu “rasmalhar” ao fundo da vereda, e mais longe ainda ouviu o ladrar de um cão. Apurou a vista mais o ouvido e viu aproximar-se, vagarosamente, um vulto que a custo se movia vereda acima com uma enorme carga às costas. Pensou: é o primeiro a passar, logo é o Zarolho. Mas que até não lhe pareceu o andar dele...passados dez minutos, outro; mais dez minutos, outro. Houve um espaço maior. O guarda olhou o relógio: já havia quinze minutos que passara o último contrabandista. Julgou-se enganado. Espumou de raiva e praguejou contra o Zarolho. Deixara-os passar a todos. E o cabo Marques? De repente vê aproximar-se o último, já com vinte minutos de espaçamento:
- Alto em nome da lei! Larga a carga ou mato-te! disse o guarda Santos já bem agarrado aos tirantes da grande carga de cerca de quarenta quilos de toucinho que já cheirava um pouco a bafio.
- Senhor guarda, eu sou o Zarolho... Sabe... a minha Lolita não me largava e eu quando me despachei já eles tinham abalado...já não fui o primeiro...sabe esta coisa das mulheres serem teimosas...eu não queria, mas...e agora senhor guarda?
- E agora, Zarolho? Que queres que eu te faça? Bolas p’ra isto!
- Tenha pena de mim que sou um desgraçado. Nem para denunciante sirvo! Se o senhor guardinha quiser, leve-me o toucinho mas deixe-me ao menos o mel que é para os meus gaiatos que andam com tosse, tadinhos...
...No dia seguinte, o cabo Marques deu os parabéns ao guarda Santos, pela apreensão de toucinho que fizera. Era pouco, mas já era alguma coisita. De mais a mais tendo em conta de que actuara sozinho... Por sua vez o guarda António Santos, desconfiava, à altura deste relato, que não tinha lá grande “queda” para ser guarda...era um coração mole! Hoje tem a certeza: foi transferido como impedido para a Secção de Portalegre, onde se reformou por limite de idade.

Avis, 16 de Julho de 2006
(Fernando Máximo)
Sou filho de um ex-guarda-Fiscal, de nome JOSÉ DA SILVA MÁXIMO. Esteve em tantos postos da fronteira alentejana e algarvia que nem sei...Rabaça, S. Brás dos Matos, Pomarão, Mocissos, Tomina...
As vezes gosto de escrever uns bocados de verdades misturadas com imaginação. Quero partilhar convosco um conto que, por acaso, até foi premiado com uma menção honrosa num concurso literário que houve no Redondo....para todos vós que gostais de "A grande família da Guarda-Fiscal":


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