terça-feira, 9 de outubro de 2018


Para além da eutanásia

Lembras-te? Morria-se em casa, no aconchego do lar, com os seus ao lado. Tal como se vivia: duas, três gerações debaixo do mesmo tecto, ou vizinhas.
Morria-se cheio de saúde, por uma qualquer moléstia que matava em poucos dias. Até lá, era a vida plena, cheia de carências, sim, mas não necessariamente de sofrimento.
As crianças assistiam e ajudavam nas exéquias. “É a vida”, dizia-se; sim, a vida, que envolve necessariamente a morte; a morte, um transitório momento da vida.
Velava-se o corpo na divisão maior, porque eram sempre muitos os convivas a quererem partilhar este momento da vida, a vida morte. Qualquer outro local soava a desprezo, alienação, profanação. Era, depois, simplesmente devolvido à terra, para que ela, alimentando-se, pudesse iniciar um novo ciclo. A campa rasa, para que mais depressa o corpo e a memória se diluissem no ser universal que partilhamos.

Sempre insatisfeitos, ocorreu aos humanos que poderiam prolongar, por mais algum tempo, essa vida vida, depois de a considerarem escassa para usufruirem de tantos e apetecíveis bens terrenos. Havia os arautos da verdade revelada, que, há séculos, nos anunciavam a morte como pórtico triunfal que dá acesso ao jardim das inefáveis delícias celestiais. Havia o discurso dos filósofos, que faziam da vida o bem supremo, enquanto digna. Porém, nem, por ironia, os primeiros, que prometiam o prazer dos sentidos para toda a eternidade, nem a dignidade evocada pelos segundos, marca que deveria ser distintiva da nossa raça de criaturas, foram motivo bastante para deixarem que a Natureza desse livre curso à suas leis.

Prolongar a vida passou a ser a palavra de ordem em todas as instâncias: a ciência, que, na demanda insaciável de causas e efeitos, ameaça invadir o próprio domínio das últimas causas, reino da filosofia; os governos, que por todos os meios se esmeram no afã de criarem as condições para a felicidade imediata dos seus súbditos; os industriais, que, sempre atentos às intermitências dos mercados, não descuram as oportunidades do lucro; o indivíduo, que, simultaneamente agente e paciente neste palco de relações, presunçosamente se tem como princípio e fim da ordem do Universo... E, como pano de fundo, talvez o sonho da imortalidade, que, desde a tentativa falhada do pecado original, nunca mais deixou de interferir no nosso subconsciente coletivo.

Foram admiráveis os resultados de tanta porfia, expressos num extraordinário aumento de esperança de vida, sim, de qualidade. Mas, simultaneamente, extraordinário foi também o aumento do tempo agónico, aquele em que as faculdades e capacidades irreversivelmente se degradam, ao ponto da total dependência de um cuidador. Esse tempo, antes escasso, é agora prolongado ao ritmo das máquinas, das técnicas, dos fármacos, que entre si competem na composição dos elementos que mantêm, ad nauseam, esse sopro vital, tornado valor absoluto até ao último suspiro. Apesar do sofrimento atroz que se adivinha na imobilidade do corpo e no alheamento do espírito. Apesar dos dias... dos meses... dos anos de olhar perdido e vazio de sentido e de esperança.
Hipocritamente, a sociedade, ou seja o Estado, adoptou algumas estratégias para lidar com o problema. Por norma, espera que o familiar mais próximo preste os cuidados necessários, atribuindo, mesmo, incentivos por isso, ou até a colaboração dos serviços de saúde. As famílias sabem, porém, que esta primeira instância é, hoje, condicionada por incompatibilidades com obrigações profissionais no mercado de trabalho, e que, havendo disponibilidade, na maior parte dos casos rapidamente sobrevém o esgotamento do cuidador, tal a dependência extrema a que chegam muitos idosos. Segue-se o internamento num lar, com redobrada hipocrisia agora designado “ ERPI” (Estrutura Residencial para Idosos): momento este doloroso e angustiante para os familiares, que não mais se libertarão do sentimento de culpa por “abandono” de um ente querido, e para o idoso, que se vê depositado na antecâmara da morte.

Poucos de nós haverá que não conheçam o dramatismo desta realidade e o que ela contém de obsceno. Mas se não for esse o caso, vá o leitor a uma dessas estruturas (representante da maioria que cobre o País, não daquelas poucas que têm por detrás grandes investimentos financeiros e só acessíveis a uma restrita elite...) e diga se não é a morte que espreita a cada porta e se senta no vazio que rodeia os que ali debilmente se prendem à vida. Felizes aqueles que, em tal cenário, já não dispõem das faculdades cognitivas... e simplesmente vegetam, porque para os que ainda têm  olhos para ver, ouvidos para ouvir...e juízo para ajuizar, mais lhes valera a morte que tal sorte!

Não me lembro de filósofo ou cientista que se tenha questionado sobre uma lacuna que me parece congénita ao nível da inteligência humana: a incapacidade de planear a longo prazo, ou seja, colocando o problema ao nível da espécie, a milénios. Mais que qualquer outro animal superior, o Homem juntou ao instinto novos estratagemas de sobrevivência e de mobilidade, disseminou-se pelo planeta, depradou indiscriminadamente, poluiu, proliferou em número só superado por alguns animais que, para seu próprio proveito, domesticou. Suspendeu-se alguma vez o Homem em reflexão sobre as consequências dos seus actos, que assim o levaram ao domínio soberano sobre a Terra? Não. A lógica dos seus compromissos foi sempre a do carpe diem, tão deliciosamente vivido por todas as personagens desta comédia humana: desde o clã familiar que procura o domínio em número, posse e território que lhe assegurem o bem estar dos seus membros, ao cientista que exulta com a resolução do problema que aflige o nosso dia a dia, ao político que persegue a cada minuto o crescimento da economia, e, até, ao poeta modernista que, para êxtase dos contemporâneos, cria a “Ode Triunfal” (Ricardo Reis) em louvor das rodas e engrenagens saídas da Revolução Industrial! r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-!

Verdade seja que apareceu um Thomas  Malthus (segunda metade do sec. XVIII) a reflectir sobre o impacto que tem o crescimento da população mundial, que se processa em progressão geométrica, na qualidade da nossa existência. Mas fê-lo já sobre o acontecimento, e apenas conjugando o tema com a progressão aritmética na produção de alimentos, que assim se tornarão insuficientes. De fora, ficaram factores, hoje decisivos, e altamente condicionados pela acção dessa espécie dita inteligente que profusamente se instalou por toda a superfície planetária, como o equilíbrio ambiental, a biodiversidade, o aquecimento global... E a culminar tal ramalhete de efeitos, nunca previstos em tempo e muito menos planeados, esta obsessiva perseguição da imortalidade, que a todos nos põe às voltas com a eutanásia.


Parede, dia de S.ta Pelágia,virgem e mártir
Manuel Antunes Neto

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