Para além da eutanásia
Lembras-te? Morria-se em
casa, no aconchego do lar, com os seus ao lado. Tal como se vivia: duas, três
gerações debaixo do mesmo tecto, ou vizinhas.
Morria-se cheio de saúde,
por uma qualquer moléstia que matava em poucos dias. Até lá, era a vida plena,
cheia de carências, sim, mas não necessariamente de sofrimento.
As crianças assistiam e
ajudavam nas exéquias. “É a vida”, dizia-se; sim, a vida, que envolve
necessariamente a morte; a morte, um transitório momento da vida.
Velava-se o corpo na
divisão maior, porque eram sempre muitos os convivas a quererem partilhar este
momento da vida, a vida morte. Qualquer outro local soava a desprezo,
alienação, profanação. Era, depois,
simplesmente devolvido à terra, para que ela, alimentando-se, pudesse iniciar
um novo ciclo. A campa rasa, para que mais depressa o corpo e a memória se
diluissem no ser universal que partilhamos.
Sempre insatisfeitos,
ocorreu aos humanos que poderiam prolongar, por mais algum tempo, essa vida vida,
depois de a considerarem escassa para usufruirem de tantos e apetecíveis bens
terrenos. Havia os arautos da verdade revelada, que, há séculos, nos anunciavam
a morte como pórtico triunfal que dá acesso ao jardim das inefáveis delícias
celestiais. Havia o discurso dos filósofos, que faziam da vida o bem supremo, enquanto
digna. Porém, nem, por ironia, os primeiros, que prometiam o prazer dos
sentidos para toda a eternidade, nem a dignidade evocada pelos segundos, marca que
deveria ser distintiva da nossa raça de criaturas, foram motivo bastante para
deixarem que a Natureza desse livre curso à suas leis.
Prolongar a vida passou a
ser a palavra de ordem em todas as instâncias: a ciência, que, na demanda
insaciável de causas e efeitos, ameaça invadir o próprio domínio das últimas
causas, reino da filosofia; os governos, que por todos os meios se esmeram no
afã de criarem as condições para a felicidade imediata dos seus súbditos; os
industriais, que, sempre atentos às intermitências dos mercados, não descuram as
oportunidades do lucro; o indivíduo, que, simultaneamente agente e paciente
neste palco de relações, presunçosamente se tem como princípio e fim da ordem
do Universo... E, como pano de fundo, talvez o sonho da imortalidade, que,
desde a tentativa falhada do pecado original, nunca mais deixou de interferir
no nosso subconsciente coletivo.
Foram admiráveis os
resultados de tanta porfia, expressos num extraordinário aumento de esperança de
vida, sim, de qualidade. Mas, simultaneamente, extraordinário foi também o
aumento do tempo agónico, aquele em que as faculdades e capacidades
irreversivelmente se degradam, ao ponto da total dependência de um cuidador.
Esse tempo, antes escasso, é agora prolongado ao ritmo das máquinas, das
técnicas, dos fármacos, que entre si competem na composição dos elementos que
mantêm, ad nauseam, esse sopro vital,
tornado valor absoluto até ao último suspiro. Apesar do sofrimento atroz que se
adivinha na imobilidade do corpo e no alheamento do espírito. Apesar dos dias...
dos meses... dos anos de olhar perdido e vazio de sentido e de esperança.
Hipocritamente, a
sociedade, ou seja o Estado, adoptou algumas estratégias para lidar com o
problema. Por norma, espera que o familiar mais próximo preste os cuidados
necessários, atribuindo, mesmo, incentivos por isso, ou até a colaboração dos
serviços de saúde. As famílias sabem, porém, que esta primeira instância é, hoje,
condicionada por incompatibilidades com obrigações profissionais no mercado de
trabalho, e que, havendo disponibilidade, na maior parte dos casos rapidamente
sobrevém o esgotamento do cuidador, tal a dependência extrema a que chegam
muitos idosos. Segue-se o internamento num lar, com redobrada hipocrisia agora
designado “ ERPI” (Estrutura Residencial para Idosos): momento este doloroso e
angustiante para os familiares, que não mais se libertarão do sentimento de
culpa por “abandono” de um ente querido, e para o idoso, que se vê depositado na
antecâmara da morte.
Poucos de nós haverá que
não conheçam o dramatismo desta realidade e o que ela contém de obsceno. Mas se
não for esse o caso, vá o leitor a uma dessas estruturas (representante da
maioria que cobre o País, não daquelas poucas que têm por detrás grandes
investimentos financeiros e só acessíveis a uma restrita elite...) e diga se
não é a morte que espreita a cada porta e se senta no vazio que rodeia os que
ali debilmente se prendem à vida. Felizes aqueles que, em tal cenário, já não
dispõem das faculdades cognitivas... e simplesmente vegetam, porque para os que
ainda têm olhos para ver, ouvidos para
ouvir...e juízo para ajuizar, mais lhes valera a morte que tal sorte!
Não me lembro de filósofo
ou cientista que se tenha questionado sobre uma lacuna que me parece congénita
ao nível da inteligência humana: a incapacidade de planear a longo prazo, ou
seja, colocando o problema ao nível da espécie, a milénios. Mais que qualquer
outro animal superior, o Homem juntou ao instinto novos estratagemas de
sobrevivência e de mobilidade, disseminou-se pelo planeta, depradou
indiscriminadamente, poluiu, proliferou em número só superado por alguns
animais que, para seu próprio proveito, domesticou. Suspendeu-se alguma vez o
Homem em reflexão sobre as consequências dos seus actos, que assim o levaram ao
domínio soberano sobre a Terra? Não. A lógica dos seus compromissos foi sempre
a do carpe diem, tão deliciosamente
vivido por todas as personagens desta comédia humana: desde o clã familiar que
procura o domínio em número, posse e território que lhe assegurem o bem estar
dos seus membros, ao cientista que exulta com a resolução do problema que
aflige o nosso dia a dia, ao político que persegue a cada minuto o crescimento
da economia, e, até, ao poeta modernista que, para êxtase dos contemporâneos,
cria a “Ode Triunfal” (Ricardo Reis) em louvor das rodas e engrenagens saídas
da Revolução Industrial! r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-r-!
Verdade seja que apareceu
um Thomas Malthus (segunda metade do
sec. XVIII) a reflectir sobre o impacto que tem o crescimento da população
mundial, que se processa em progressão geométrica, na qualidade da nossa
existência. Mas fê-lo já sobre o acontecimento, e apenas conjugando o tema com
a progressão aritmética na produção de alimentos, que assim se tornarão
insuficientes. De fora, ficaram factores, hoje decisivos, e altamente condicionados
pela acção dessa espécie dita inteligente que profusamente se instalou por toda
a superfície planetária, como o equilíbrio ambiental, a biodiversidade, o
aquecimento global... E a culminar tal ramalhete de efeitos, nunca previstos em
tempo e muito menos planeados, esta obsessiva perseguição da imortalidade, que a
todos nos põe às voltas com a eutanásia.
Parede,
dia de S.ta Pelágia,virgem e mártir
Manuel Antunes Neto
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