É possível,
com as sofisticadas próteses e outras tecnologias a instalarem-se em todos os
domínios, que a partenogénese venha a constituir-se na fórmula corrente para a
reprodução da maioria das espécies, incluindo a humana. Enquanto tal não acontece
(calculo que não antes de passados uns bons séculos), vou-me revoltando contra a
farisaica sociedade que consagrou em lei a condenação do piropo, remetendo o
seu uso para a esfera literária ou para o arraial pimba, onde a multidão, por
todos nós constituída, dedicada e labregamente entoa os refrões mais abjectos.
Há também aqueles que avulsamente discorrem nas páginas dos jornais sobre o quanto
ofendidos se sentem com os assédios de
cariz sexual. Lido o texto, resta-nos, quase sempre, a sensação de que o seu
autor não é mais que a encarnação da estátua que Pigmaleão esculpiu nas Metamorfoses de Ovídio, de grande beleza, mas fria como o
gelo, que só a intervenção da divina Afrodite conseguiu derreter e transformar
na quente Galateia. Destes casos me proponho fazer tema das palavras que
seguem.
Condeno
veementemente o assédio como aqui o entendo: toda a pressão, por palavras ou
actos, baseada no ascendente, autoritário ou outro, que se tem sobre alguém. E
repudio, também, o fundamentalismo condenatório que se instalou em torno desta
temática, sobretudo a de cariz sexual, contrariando a natureza das coisas, a
nossa história genética e os mecanismos que Natureza foi construindo para
autoconservação.
O cortex
cerebral humano, a sede, dizemos nós, dos mais elaborados processos de
consciência e pensamento, tem menos de 2,5 milhões de anos de existência (os
primeiros humanos surgiram há 2,5 milhões de anos, com cérebros de 600 cm.
cúbicos, que evoluiram até aos actuais, com 1200 a 1400 cm. cúbicos). Em contrapartida,
antecedem-no o aparecimento da vida há 3,85 biliões(!!!) de anos, e o
desenvolvimento em complexidade de toda a trama estrutural básica que sustenta
o produto final que é o homem, a cereja no topo do bolo da Criação ...
Numa das
possíveis concepções da realidade, tudo é um todo coerente e necessário, que
concebemos como composto só porque a nossa mente tende a decompor para
compreender. Na verdade, nem sequer deveríamos questionar a importância
relativa dos componentes de um corpo, pois na simplicidade da célula está já
toda a complexidade da vida. Não é mais digna nem mais elevada a função das sinapses
beethovianas para a criação da 9ª
sinfonia, do que o reflexo desencadeado para a evacuação dos resíduos da
digestão. Nem mais admirável é o Homem, que vaidosamente consideramos a medida
de todas as coisas, do que as primitivas cianobactérias que, durante o primeiro
bilião de anos da vida na Terra, se entregaram à tarefa de fixar o hidrogénio
da água libertando o oxigénio como desperdício, assim abrindo caminho à vida
como nós a conhecemos. Mas se isso é verdade para o “produto acabado”, já o mesmo
não acontece na relação das precedências: na progressão evolutiva da vida, a
fase anterior é condição sine qua non
para a que se segue. No Homem é bem patente essa relação quando nos situamos ao
nível do funcionamento básico do organismo, com as suas necessidades
primárias, versus outras realizações
consideradas de nível mais elevado. Podemos passar sem mais ou menos, ou nenhum,
Beethoven, mas não sobreviveremos sem respirar, sem comer, sem dormir..., e,
como espécie, sem o instinto da autodefesa, e sem sexo, por enquanto. Por serem
tão vitais, a Natureza protege essas necessidades recorrendo a estratagemas, por
exemplo, dotando-as de automatismos, sujeitando-as a apetites inelutáveis e, até,
premiando mesmo, no caso do sexo, com um dos mais intensos prazeres que é dado
experimentar ao Homem.
E aí estamos nós de volta ao piropo.
O instinto
sexual é um dos mais avassaladores instintos da Natureza. De tal modo que
resistiu a todos os tabus e a todas as proibições que muitas culturas lhe foram
impondo ao longo dos séculos. Mesmo nas sociedades que supostamente terão
sublimado a sua apetência para outras esferas ditas do espírito, como algumas
sociedades clericais, multiplicam-se os ardis, tanto a nível individual como
institucional, para sonegação, ou justificação, dos deslizes e imposições da
carne. A hipocrisia e o secretismo são a pedra de toque destas escapatórias, de
consequências psicológicas e sociais devastadoras para todos os intervenientes,
directos ou indirectos.
A Natureza
fez ainda mais por uma função que, sobre todas as outras, é garantia de vida
das espécies : envolveu-a em rituais e jogos de sedução, que vão muito para
além da consumação do acto sexual no contacto físico. A vida é um bailado de
erotismos, expressos em gestos, olhares, atitudes, palavras ditas ou escritas,
que de forma alguma se confinam à noite ou à reserva dos espaços fechados. Quão
hipócritas deveremos ser para renegar a intenção provocatória, se ela está
geneticamente inscrita na espécie como penhor de vida? A que grau de frieza
devemos descer para desviar o olhar ou evitar o comentário, se estes
comportamentos são expressão de uma realidade que a todos nos enleia , e hinos de
louvor ao sublime tangível? À própria anatomia concebeu-a a Natureza de molde a
exigir estes jogos para exercício da função. E desde Aristóteles se sabe que é
através dos sentidos que nos chega todo o conhecimento.
É certo que
a evolução também aconteceu por aqui. Na verdade, já não nos situamos ao puro
nível da agressividade reptiliana; nem aceitamos os esgares lúbricos e bocas
salivantes que as temáticas de Sodoma e Gomorra nos ilustraram no écran. A
evolução levou-nos à estética e à arte a aveludarem os nossos comportamentos e
as esquinas da existência. Também no que diz respeito às voltas que dá o sexo.
O piropo
assim o entendo: algo de conotação erótica que se diz ao outro, louvando-o. Às
vezes assume qualidades de poema, forma mais alta de literatura. Piropo
ofensivo é uma contradição de termos, não existe. Ou, se existe, o “ofensivo”
absorve o “piropo” e segue directo para a alçada dos tribunais, sendo inútil e
descabida legislação dedicada.
Aceito que é
este um tema fracturante e por demais complexo para sobre ele discorrer um
pobre amante como eu. Aceito que, sapateiro, fui além do sapato, que estou a
dar um passo maior que a perna, a meter foice em seara alheia, enfim, que a
cada macaco seu galho. Mas certo, certo é que até o meu íntimo amigo ( e por
isso suspeito), Manuel Porém, me dá razão, assim:
suave
o
abraço em que te sonho
a
seiva sôfrega
como
no deserto
a
árvore no infinito cresce
e
soa sóbria
deslizo
à
sombra, furtiva serpe,
no
curvo espaço dos teus silêncios
que
um desmedido roxo
um
divino roxo
estremece
humedece
o
tempo que medeia, estreito,
e
a palavra lânguida, cicio
intensas
as margens
tensas
em
rodopio
convulsionado
lavro
no teu livro, cúmplice,
as
noites linha a linha
mas
é a tua palpitante carne
que
barbaramente me sufoca
sem
perífrases
em
Meimão, Setembro de 2017
Manuel
Neto
(Oficial da GF Ref)
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