sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Eros


Eros

É possível, com as sofisticadas próteses e outras tecnologias a instalarem-se em todos os domínios, que a partenogénese venha a constituir-se na fórmula corrente para a reprodução da maioria das espécies, incluindo a humana. Enquanto tal não acontece (calculo que não antes de passados uns bons séculos), vou-me revoltando contra a farisaica sociedade que consagrou em lei a condenação do piropo, remetendo o seu uso para a esfera literária ou para o arraial pimba, onde a multidão, por todos nós constituída, dedicada e labregamente entoa os refrões mais abjectos. Há também aqueles que avulsamente discorrem nas páginas dos jornais sobre o quanto ofendidos se sentem  com os assédios de cariz sexual. Lido o texto, resta-nos, quase sempre, a sensação de que o seu autor não é mais que a encarnação da estátua que Pigmaleão esculpiu nas Metamorfoses  de Ovídio, de grande beleza, mas fria como o gelo, que só a intervenção da divina Afrodite conseguiu derreter e transformar na quente Galateia. Destes casos me proponho fazer tema das palavras que seguem.

Condeno veementemente o assédio como aqui o entendo: toda a pressão, por palavras ou actos, baseada no ascendente, autoritário ou outro, que se tem sobre alguém. E repudio, também, o fundamentalismo condenatório que se instalou em torno desta temática, sobretudo a de cariz sexual, contrariando a natureza das coisas, a nossa história genética e os mecanismos que Natureza foi construindo para autoconservação.

O cortex cerebral humano, a sede, dizemos nós, dos mais elaborados processos de consciência e pensamento, tem menos de 2,5 milhões de anos de existência (os primeiros humanos surgiram há 2,5 milhões de anos, com cérebros de 600 cm. cúbicos, que evoluiram até aos actuais, com 1200 a 1400 cm. cúbicos). Em contrapartida, antecedem-no o aparecimento da vida há 3,85 biliões(!!!) de anos, e o desenvolvimento em complexidade de toda a trama estrutural básica que sustenta o produto final que é o homem, a cereja no topo do bolo da Criação ...

Numa das possíveis concepções da realidade, tudo é um todo coerente e necessário, que concebemos como composto só porque a nossa mente tende a decompor para compreender. Na verdade, nem sequer deveríamos questionar a importância relativa dos componentes de um corpo, pois na simplicidade da célula está já toda a complexidade da vida. Não é mais digna nem mais elevada a função das sinapses  beethovianas para a criação da 9ª sinfonia, do que o reflexo desencadeado para a evacuação dos resíduos da digestão. Nem mais admirável é o Homem, que vaidosamente consideramos a medida de todas as coisas, do que as primitivas cianobactérias que, durante o primeiro bilião de anos da vida na Terra, se entregaram à tarefa de fixar o hidrogénio da água libertando o oxigénio como desperdício, assim abrindo caminho à vida como nós a conhecemos. Mas se isso é verdade para o “produto acabado”, já o mesmo não acontece na relação das precedências: na progressão evolutiva da vida, a fase anterior é condição sine qua non para a que se segue. No Homem é bem patente essa relação quando nos situamos ao nível do funcionamento básico do organismo, com as suas necessidades primárias,  versus outras realizações consideradas de nível mais elevado. Podemos passar sem mais ou menos, ou nenhum, Beethoven, mas não sobreviveremos sem respirar, sem comer, sem dormir..., e, como espécie, sem o instinto da autodefesa, e sem sexo, por enquanto. Por serem tão vitais, a Natureza protege essas necessidades recorrendo a estratagemas, por exemplo, dotando-as de automatismos, sujeitando-as a apetites inelutáveis e, até, premiando mesmo, no caso do sexo, com um dos mais intensos prazeres que é dado experimentar ao  Homem.

 E aí estamos nós de volta ao piropo.

O instinto sexual é um dos mais avassaladores instintos da Natureza. De tal modo que resistiu a todos os tabus e a todas as proibições que muitas culturas lhe foram impondo ao longo dos séculos. Mesmo nas sociedades que supostamente terão sublimado a sua apetência para outras esferas ditas do espírito, como algumas sociedades clericais, multiplicam-se os ardis, tanto a nível individual como institucional, para sonegação, ou justificação, dos deslizes e imposições da carne. A hipocrisia e o secretismo são a pedra de toque destas escapatórias, de consequências psicológicas e sociais devastadoras para todos os intervenientes, directos ou indirectos.

A Natureza fez ainda mais por uma função que, sobre todas as outras, é garantia de vida das espécies : envolveu-a em rituais e jogos de sedução, que vão muito para além da consumação do acto sexual no contacto físico. A vida é um bailado de erotismos, expressos em gestos, olhares, atitudes, palavras ditas ou escritas, que de forma alguma se confinam à noite ou à reserva dos espaços fechados. Quão hipócritas deveremos ser para renegar a intenção provocatória, se ela está geneticamente inscrita na espécie como penhor de vida? A que grau de frieza devemos descer para desviar o olhar ou evitar o comentário, se estes comportamentos são expressão de uma realidade que a todos nos enleia , e hinos de louvor ao sublime tangível? À própria anatomia concebeu-a a Natureza de molde a exigir estes jogos para exercício da função. E desde Aristóteles se sabe que é através dos sentidos que nos chega todo o conhecimento.

É certo que a evolução também aconteceu por aqui. Na verdade, já não nos situamos ao puro nível da agressividade reptiliana; nem aceitamos os esgares lúbricos e bocas salivantes que as temáticas de Sodoma e Gomorra nos ilustraram no écran. A evolução levou-nos à estética e à arte a aveludarem os nossos comportamentos e as esquinas da existência. Também no que diz respeito às voltas que dá o sexo.

O piropo assim o entendo: algo de conotação erótica que se diz ao outro, louvando-o. Às vezes assume qualidades de poema, forma mais alta de literatura. Piropo ofensivo é uma contradição de termos, não existe. Ou, se existe, o “ofensivo” absorve o “piropo” e segue directo para a alçada dos tribunais, sendo inútil e descabida legislação dedicada.

Aceito que é este um tema fracturante e por demais complexo para sobre ele discorrer um pobre amante como eu. Aceito que, sapateiro, fui além do sapato, que estou a dar um passo maior que a perna, a meter foice em seara alheia, enfim, que a cada macaco seu galho. Mas certo, certo é que até o meu íntimo amigo ( e por isso suspeito), Manuel Porém, me dá razão, assim:

suave

o abraço em que te sonho

a seiva sôfrega

como no deserto

a árvore no infinito cresce

e soa sóbria



 deslizo

à sombra, furtiva serpe,

no curvo espaço dos teus silêncios

que um desmedido roxo

um divino roxo

estremece



humedece

o tempo que medeia, estreito,

e a palavra lânguida, cicio

intensas as margens

tensas

em rodopio



convulsionado

lavro no teu livro, cúmplice,

as noites linha a linha

mas é a tua palpitante carne

que barbaramente me sufoca

sem perífrases





em Meimão, Setembro de 2017

Manuel Neto

(Oficial da GF Ref)


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