quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

 

Uma leitura de Histórias do Contrabando e não só!
Em linguagem simples, por vezes ingénua e, talvez, excessivamente despretensiosa, Histórias do Contrabando e não só!, de Fernando Cantista Pizarro Bravo, é, sob a forma de narrativa, um verdadeiro Ensaio sobre o contrabando raiano. Salvo referências a alguns termos técnicos, e ainda assim remetidas para notas de rodapé, o corpo da obra não se detém em definições nem em análises intelectualizadas à procura de conteúdos e conceitos majestáticos, como é timbre deste género literário-científico. No entanto, de vivência em vivência relatadas, dá-nos conta de uma realidade que, de tão vivida, se nos torna clara como água nos seus múltiplos constituintes e... cambiantes.
O contrabando raiano é, nestas páginas, e visto sobre a estratificação que o tempo dá das coisas e dos conceitos, a evidência que já há muito se vinha revelando: uma actividade de envolvimento cósmico a que não escapa nenhum dos protagonistas da comédia humana, no seu intercâmbio aos diversos níveis, incluindo o do sagrado.  Se é concebível imaginarmos um crente guarda fiscal a implorar a protecção divina  para o êxito da sua missão, não é menos verosímil que o contrabandista recorra à mesma instância para o bom termo da sua actividade (págª 11), que, em geral, a sociedade aceita com benevolência (págª 49...). Se o agente da autoridade crê no dever patriótico de defender a Fazenda Nacional (págª 25), também não se escandaliza que o seu vizinho faça pela vida descaminhando umas panas, uns bezerros, ou uns caramelos, de que pouco mal virá ao mundo, se comparado com os grandes tráficos que campeiam nas altas instâncias das influências ...Daí que o humanismo das relações (págª 65, 75...), a sã convivência (págª 49, 51...), sem promiscuidade, dos figurantes desta comédia (no sentido grego, isto é, das peripécias da vida quotidiana da comunidade, por oposição a tragédia, construída em torno dos mistérios que envolvem o destino e as ontológicas limitações e insatisfações da alma das elites), as emoções e os dramas partilhados quando em causa está a dignidade humana (págª 48, 53, 74...) sobretudo a dos mais novos ou dos mais desfavorecidos, o humor das situações a desdramatizar uma vida já por si dura e madrasta (págª 23, 31,32,39...), o jogo da matreirice do contrabandista contra a perspicácia do guarda fiscal desportivamente assumido por ambas as partes (págª 25, 37, 49, 67, 76...), sejam  a pedra de toque deste ambiente raiano em que o “cá” e o “lá” nem pelo falar se destinguem (pág. 47).
Histórias do Contrabando e não só!, (numa leitura talvez subliminarmente influenciada pela actual  globalização do comércio e do consumo sem limites e quase sem regras) apresenta-se-nos, assim, como agente desmitificador de ideários construídos sobre estereótipos sociais e económicos rigidamente  definidos, mas de conteúdos balofos ou sobrevalorizados, e ainda como agente desmistificador de práticas lesivas da normalidade das relações sociais, em comunidades limitadas culturalmente, mas estritamente unidas por laços afectivos.
Verdadeiramente inovador nestas páginas, e digo-o entre o humor e a verdade factual..., é a definição de uma nova categoria de mercadoria contrabandeável, a missa, exactamente essa cerimónia  celebrada por sacerdote católico. Em tempos de transacções comerciais a propósito de tudo e de nada, numa espiral de materialismo sem pingo de espírito que caracteriza grande parte dos comportamentos humanos actuais, como não classificar de contrabando a compra de missas espanholas, se ela implica a saída de divisas do País? Contra simonia semelhante - o tráfico de indulgências - se desencadeou, no século XVI, a Reforma Protestante, que haveria de transformar o mundo ou, pelo menos, definir o seu progresso civilizacional. Países como a Holanda, a Suíça, a Alemanha e os nórdicos, construiram, sobre uma visão mais humana e menos interesseira das Escrituras, sociedades mais justas, mais democráticas (ressalvo, evidentemente a Alemanha hitleriana), mais progressistas. Bem engraçado, Pizarro Bravo!
                                                                                                     8 de Janeiro de 2013
                                                                                                           Manuel Neto
 

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